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10/01/14

 
 
   - As velas - diz distraído, quando lhe saltam à vista os restos fumegantes das velas do candelabro, colocado na borda da lareira. - Olha, as velas arderam até ao fim.
   - Duas perguntas - diz repentinamente Konrád, numa voz apagada -, disseste que eram duas perguntas. Qual é a outra?...
   - A outra?... - responde o general. Inclinam-se um para o outro, como dois velhos cúmplices que têm medo das sombras da noite e de que as paredes os ouçam. - A outra pergunta?.... - repete sussurrando. - Mas se não respondeste à primeira... Olha - diz numa voz muito baixa -, o pai da Krisztina acusou-me de ter sobrevivido. Queria dizer que tinha sobrevivido a tudo. Porque uma pessoa não responde só com a sua morte. Essa é uma boa resposta. Mas responde também, se sobrevive a alguma coisa. Nós dois, sobrevivemos a uma mulher - diz num tom confidencial. - Tu, ao te ires embora, eu, ao ficar aqui. Sobrevivemos com cobardia ou com cegueira, com ressentimento ou com prudência, o facto é que sobrevivemos.(...) Quem sobrevive ao outro é sempre traidor. Sentíamos que tínhamos de viver, e não é possível atenuar isso, porque ela é que morreu. Morreu, porque te foste embora, morreu porque eu fiquei e não me aproximei dela, morreu porque nós dois, homens, a quem ela pertencia, fomos mais vis, orgulhosos, barulhentos e silenciosos que o que uma mulher podia suportar, porque fugimos dela e a traímos, porque lhe sobrevivemos. Essa é a verdade. Tens de saber isso, enquanto estiveres em Londres, quando tudo acabar, na última hora, sozinho. Eu também saberei, nesta casa: e já o sei. Sobreviver a alguém, a quem amámos tanto (...), a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida. Os códigos penais não conhecem esse crime. Mas nós os dois sabemos (...) nós estamos vivos, e nós os três estávamos ligados duma maneira ou de outra, na vida e na morte (...) E o que importa tudo aquilo que as pessoas pensam sobre isso? Nada - diz com simplicidade. - No fim, o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.(...) Gostava que me dissesses (...) qual é a tua opinião sobre isso? Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre, até à morte?(...) É assim tão profunda, tão maldosa, tão grandiosa e desumana a paixão?(...) Essa é a pergunta.(...) Responde, se sabes responder - diz alto e insistente.
   - Porque perguntas? - replica o outro tranquilamente. - Sabes que é assim.
(...)
   - Agora estás mais tranquilo? - pergunta a ama.
   - Sim - diz o general.
    Caminham juntos (...) O general avança lentamente, apoiando-se na bengala. Percorrem o corredor, cheio de quadros pendurados na parede. A mancha que indica o lugar do retrato da Krisztina, faz parar o general.
   - O quadro - diz - já podes voltar a pô-lo no lugar.
   - Sim - responde a ama.
   - Não tem importância - diz o general.
   - Eu sei.
   - Boa noite, Nini.
   - Boa noite.
 
 
    Márai, Sándor. As velas ardem até ao fim. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 2004, pp 150 - 153.
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09/01/14

 
 
Uma pessoa sabe sempre a verdade, essa outra verdade que é oculta pelas representações, pelas máscaras e pelas circunstâncias da vida. Os dois rapazes foram educados juntos, prestaram juramento juntos, viveram juntos durante anos, enquanto estiveram em Viena, porque o oficial da guarda encontrou maneira de o filho e Konrád passarem os primeiros anos de serviço perto da corte (...).
   Konrád era "uma pessoa diferente" e não era possível a ninguém aproximar-se com perguntas do seu segredo. Estava sempre calmo. Nunca discutia. Vivia, cumpria os seus deveres, comunicava com os companheiros, movia-se na sociedade e no mundo, como se o serviço militar nunca terminasse (...) e o filho do oficial da guarda notava com preocupação que Konrád vivia como um monge.
(...) O filho do oficial da guarda implorava em voz baixa que Konrád partilhasse com ele os seus bens, dos quais não sabia bem o que fazer. Konrád explicava-lhe que não podia aceitar nem um tostão. E ambos sabiam que isso era verdade: o filho do oficial da guarda não podia dar dinheriro a Konrád e tinha de suportar andar no mundo, levar uma vida digna da sua posição e do seu nome, enquanto Konrád, em casa, no apartamento de Hietzing, jantava ovos mexidos cinco noites por semana e contava pessoalmente as peças de roupa interior chegadas da lavandaria. Mas isso não era importante. O facto mais assustador era que, além do dinheiro, aquela amizade devia ser salvaguardada para a vida. Konrád envelhecia depressa. Aos vinte e cinco anos de idade já usava óculos para ler. E à noite, quando o amigo chegava de Viena e do mundo, a cheirar a tabaco (...) conversavam em voz baixa durante muito tempo, como se Konrád fosse um mágico que passasse o tempo sentado em casa a matar a cabeça sobre o sgnificado do ser humano e dos fenómenos, enquanto o seu fâmulo andava pelo mundo e recolhia notícias secretas da vida humana. Konrád, de preferência, lia livros ingleses sobre a história da convivência dos homens e sobre o desenvolvimento social. O filho do oficial da guarda apenas lia com prazer livros sobre cavalos e viagens. E porque gostavam um do outro, ambos perdoavam ao outro o pecado original: Konrád perdoava ao amigo a riqueza, o filho do oficial da guarda perdoava a Konrád a pobreza.
   Aquela "diferença" de que o pai tinha falado, quando Konrád e a condessa haviam tocado a Fantasie polonaise, conferia a Konrád um certo poder sobre a alma do amigo.
 
 
  Márai, Sándor. As velas ardem até ao fim. Lisboa: Pub. Dom Quixote, 2004, pp 41 - 46.
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