23/08/13

 
 
Vladimir Queiroz, Maria João Coutinho e Victor Oliveira Mateus no "Café Saudade", em Sintra, no dia 22 de Agosto de 2013,
 



Texto de apresentação do livro " Nuances" de Vladimir Queiroz:
 

    O novo livro de Vladimir Queiroz, Nuances, numa primeira abordagem pode ser entendido como uma incursão nos territórios da afectividade humana, mais especificamente do amor. Logo no soneto preambular, cujo título dá nome ao livro, o autor não só esboça uma caracterização aproximativa do sentimento referido (é vasto, tem íngremes vertentes, está submetido a um fluxo contínuo e é fonte desejante do olhar), como também estabelece  a relação existente entre o amor e o desejo (que ele não seja hostil à moral nem cúmplice de uma culpa ignorante), na sequência disto o homem passará a ser entendido como vivenciando um manancial de experiências e de pensamentos diversos, e por vezes antagónicos, portanto, deduz-se já que do amor não é possível alcançar-se uma definição rigorosa e de carácter fixista, nem tão-pouco vivenciá-lo através de uma experiência unívoca – do amor só se tem, e só se vive, não uma qualquer essencialidade estabelecida para todo o sempre, mas as nuances que dele conseguimos atingir.
    No soneto Burburinho, p 15, o poeta enfatiza duas das principais linhas de força desta obra: primeiro, o amor está submetido a uma dialéctica de ocultação/desocultação (O amor, a que persegues tanto,/esconde-se a te negar carinho;/mas, um dia, em meio ao burburinho/de vozes e sorrisos, ei-lo por encanto.); segundo, o amor está também submetido a uma outra dualidade antinómica: permanência/evanescência (O amor é como a água do mar:/chega junto à praia, penetra profundo/molhando a areia, que se deixa envolver.//Enigmático, brincalhão, vagabundo,/serena as águas como quem vai permanecer,/mas, de súbito, foge, para de novo voltar.). Depreende-se, por conseguinte, que deverá ser atribuição do poeta procurar entender, e viver, este mesmo amor em si lábil e multifacetado. Perante um cenário deste tipo percebe-se o quão difícil é para o ser humano movimentar-se, e construir-se, neste território, já que nele ora se perde, ora se encontra, ora ainda se voltará a perder. Uma vez chegados aqui dois outros aspectos fundamentais da poesia de Vladimir Queiroz se nos deparam: a figuração do feminino, estruturalmente dual, apresenta-se-nos não só como um polo de desejo (“estava ávido para conduzir/o desejo por entre as frestas/inexploradas em segredo.”, poema Ávido p 39 ; “Oh! Sorriso de neve/provocas em mim enxurrada/de prazer/no degelo da tua boca.” poema By Night, p 49), mas também esse feminino pode igualmente associar-se a toda uma imagética relacionada com o acolhimento e/ou com um regaço de acalmação (“O sereno que me acompanha/rodeia a face;/amado: adormeço, e sonho à toa.” poema Garoa, p 47; “Chego bem perto/entreabro os lábios/e recebo o fluxo de amor/que inunda a tua boca./(…) nos arrepia, nos aproxima,/uma quentura nos invade.” poema Regaço, p 37); o outro aspecto remete-nos para o facto de toda a movimentação afectivo-amorosa estar subsumida a um ininterrupto ciclo espiralado, onde a dimensão espiritual e a do corpo se vão procurando, afastando e reencontrando (Cf. poemas Íris, Espúria, Calmaria e o primeiro verso da segunda estrofe de Vere –Dictum, p 57).

   Uma outra vertente desta obra, que convém evidenciar, prende-se com a quantidade e os aspectos formais dos sonetos inseridos na primeira parte deste livro: a predominância de referentes que nos remetem para a antiguidade greco-latina, bem como, a formulação estilística, poderiam levar-nos a pensar estarmos perante um livro de estilo clássico com sonetos vincadamente parnasianos, no entanto, uma leitura mais atenta demonstra que, sobretudo nos sonetos, o poeta jamais sacrifica o sentido a quaisquer espartilhos de tipo formalista, assim, sobretudo nas quadras desses mesmos sonetos, opta por rimas interpoladas mas vezes há em que as combina com o verso livre (vejam-se os sonetos: Drink, Espúria), também a métrica não se apresenta regular, sendo o verso decassilábico muitas vezes sacrificado caso as exigências do sentido a isso o forcem. Um pormenor que nos afasta também de um classicismo insólito e serôdio deve-se ao facto de o autor recorrer, por vezes, ao linguajar rústico e à gíria, que acabam irrompendo no seio das formulações eruditas (“ seja sina, um sinal/ e coisa e tal; não faz mal.” poema Pétala, p 43; “Sem cor, passo… e se passo sem cor/ tenho a cor do burro quando foge.” poema Cores , p 53; “Comeu o pão que o diabo amassou,/ a carne, as vísceras, o fígado todos os dias…”, poema Canibal,  p 71). A inserção deste novo livro de Vladimir Queiroz dentro dos diversos Romantismos do século XXI, e não no seio de uma poesia estritamente clássica, é passível de ser apreendida também através de certas subtilezas temáticas e estilísticas, veja-se, por exemplo, o que diz respeito à representação da Amada: se no soneto Íris (p 21) a mulher amada nos surge com a sua tez branca  e os lábios róseos, o que nos remete imediatamente para a lírica do século XVI, o que é um facto é que não muito distante deste soneto aparecem-nos poemas de outro tipo, alguns de cunho vincadamente experimental, onde a Amada tem olhar crioulo (poema Nagô, p 27), pés pequenos (poema Calmaria, p 29), avalanche de melenas (poema By Night, p 49) e, perto do final do livro, nalguns poemas onde o cunho sócio-cultural se faz mais sentir, surge-nos mesmo a “joana pluma blonde/ explode em sangue, verve/dos sentidos.// A alma louca/ rouca na cruz santa/ luz no firmamento/ um juramento/ um lamento aos homens.” (poema Joana, p 79), ou seja, esta Joana é a célebre mulher de vida dita fácil, ícone de tanto poetas, românticos e não só. Perguntamos: se do Amor o poeta apenas obtém nuances, que dizer agora da figura feminina também ela tão diversa e plural? Não estará este livro demonstrando isso que é simultaneamente um elo e um hiato entre a Mulher (arquetípica e idealizada) e a mulher concreta, que no sensível dialoga com o poeta e com ele vai tecendo todos os caminhos do aqui? Aliás, as distinções lógicas e existenciais: universal/ particular, arquétipo/ sensível, etc. são-nos logo anunciadas no soneto introdutório do livro, pois não é por acaso que no primeiro verso da primeira quadra o Homem (ser humano) aparece significado com maiúscula e à medida que o poema se vai desenrolando o homem já nos surge referido com minúscula, como no caso do primeiro verso do primeiro terceto. E são estes aspectos que nos conduzem à confirmação de estarmos ante uma poesia assumidamente romântica, mas de um tipo de romantismo actual onde o corpo, a sexualidade e a sensualidade são salutarmente integradas sem os pruridos de qualquer juízo moral desajustado deste tempo que é o nosso (“ Rondas a minha carne…” poema Deusa, p 19; “possam arder minhas entranhas/ no calor que da tua pele emana” poema Íris, p 21; “E o frio desnuda o teu ser e enrijece os teus seios: / somos dois, somos unos,/ únicos num amor pleno e eterno.” poema Calmaria, p 29). A relação com a Amada aparece nesta obra de Vladimir Queiroz alicerçada num procedimento, não linear, mas baseado nesse movimento cíclico já anteriormente referido onde alma e corpo, espírito e matéria, entre si dialogam e se complementam: só purificando a alma, nem que seja banhando-se no Ganges (poema Avesso, p 33) aquele que ama pode entregar,  como oferenda, o corpo, e só vivenciando em pureza e eternidade o que é corpóreo no amor se pode engrandecer a alma – eis, enfim, o ciclo em forma de espiral que tinha já avançado neste texto, e é este também o objectivo último do amor e do amar (Cf. último verso de By night, p 49) nesta obra de Vladimir Queiroz, no entanto, porque ingente e complexo tal objectivo, e porque demasiado imperfeito o humano, de todo este vivenciar apenas conseguimos ir adquirindo Nuances.

 
            Victor Oliveira Mateus  ( Café Saudade, em Sintra, no dia 22 de Agosto de 2013).

                        
 

 

 


15/08/13



Só decifro
O que não vejo,
Tua funda cicatriz.

Gilvaz na pedra
E no tempo,
Sinal aberto
Aos segredos
Que adivinho
(E tenho medo).

Só desvendo
O que se esconde,
Marca de dente, vampiro
Desfeito nos teus calores.

Penetro
No que ignoro,
Teus dispersos
Labirintos.

E sinto que
O que espreito
É a sombra de mim mesmo.


   Fraga, Myriam. Poesia Reunida. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2008, p 150.
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 Poema XI do Ciclo " A ilha "


Retiremos o fel,
Como abelhas malditas,
Desta suja corola,
Desta flor de antracite.

Há um mistério a cumprir
Nesta suja existência
De conchas e corais
Que se dissolvem em lama.

Viver é semear-se
(Boca olhos sexo),
É cortar a si mesmo.

Viver é um naufrágio
Sempre repetido.

As volutas de um búzio
Capturaram o infinito,
E o horizonte é um círculo
Que rápido se fecha.


  Fraga, Myriam. Poesia reunida. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2008, p 43.
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13/08/13

 
 
       "  Soneto patético  "
 
 
Acordo para um mundo novo no jornal.
Notícias junto ao hálito acre da manhã.
Espreguiçadamente explode a realidade.
O sonho se desfaz nas cores do papel.
 
Refaço o mundo no exercício matinal.
Lavo os dentes, sorrio, a vida fica sã.
Precipito-me às ruas e ganho a cidade.
No trabalho, o refúgio. Da paz desce o véu.
 
As horas vão... A tarde cinza fica escura.
O dia chega compassadamente ao fim.
A vida, que gritava, agora só murmura.
 
Tranco-me em casa. O mundo sangra na TV.
O sangue do meu sangue esvai-se, durmo enfim.
E não sei quem te viu. E não sei quem me vê.
 
 
  Ramos, Luís Antonio Cajazeira. Mais que sempre. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p 127.
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  "  O amor de minha vida  "

Eu, com certeza, gosto é de foder.
Até digo que sei o quanto amar
seja lá o que for tem seu lugar,
mas foder por foder é mais prazer.

Amo a só superfície que há na pele,
a visão de uma boca subjugada,
apascentar um cu, gozar em cada
posição que a libido me revele.

O pau, que é sempre alerta, um dia cansa;
e o que fervia o sangue na cabeça
esfria o cavernoso da lembrança.

Resta-me, então, foder aqui e agora.
Portanto, perdição, goze e me esqueça.
Eu sou o amor que pica e vai embora.


  Ramos, Luís Antonio Cajazeira. Mais que sempre. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p 79.
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    " Teu "

Quando te alcanço o olhar e te vejo medusa,
lanças-me cobras e lagartos; colho sapos.
Que me importa? És a musa! E sou um teu capacho,
tão-só um troço a mais no caldeirão da bruxa.

Petrificado, atiro-me a teus pés de pedra.
Tua lava ferina corta as cicatrizes
da minha lama. Derretido nas raízes,
restam-me cinzas de te amar tua alma cega.

Que Cupido canhestro errou flechar meu peito
fraco tão forte! O coice lesa-me de vez
o calcanhar de Aquiles. Dói-me o cotovelo.

Mas a alvura do gelo desce em tua tez
de esfinge e de montanha e me acalma de um jeito...
Se é terrível te amar? Tanto faz (que já fez).


   Ramos, Luís Antonio Cajazeira. Mais que sempre. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p 51.
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    " Licença poética "


Sou livre pra buscar a rosa azul,
sou livre pra tocar fogo no lar,
livre pra qualquer droga, pra tomar
na veia, livre pra tomar no cu.

À minha volta o mundo é meu ensaio,
um palco, um tiro-ao-alvo, um lenço branco
em que beijo o sorriso ou cuspo o pranto,
ao bel-prazer do arbítrio, e me distraio.

Por onde começar? Mirando o céu?
Atirando no breu? Tirando o véu?
Condenado a ser livre! Como um biltre,

faço um soneto vil, sem peripécia,
que termina do jeito que começa.
Sou livre. Irremediavelmente livre.


   Ramos, Luís Antonio Cajazeira. Mais que sempre. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p 45.
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Em 2009 Ildásio Tavares deslocou-se a Portugal para assisitir ao lançamento do seu livro "As Flores do Caos" publicado pela Editora Labirinto.


       " Soneto do Desejo "


Amor só nasce e vive do Desejo.
   Nenhum Amor a outro Amor obriga:
   não há o que se faça ou que se diga
   que contrarie a força do Desejo.
Desejo logo existo. E assim emerjo.
   Mas se outro coração ao meu não liga,
   a coisa amada torna-se inimiga -
   Amor é sempre fruto do Desejo.
Planta carnívora é Amor. Querer
   imóvel que confunde o coração
   e desdenha o querer de outro querer.
Insensato gatilho da paixão:
   lucidez que comanda o enlouquecer
   Desejo és o tirano da razão.


  Tavares, Ildásio. As Flores do Caos. Fafe: Editora Labirinto, 2009, p 45.
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12/08/13

Em 2008 Ruy Espinheira Filho desloca-se a Portugal para presidir ao Júri do Prémio Camões, o mais importante prémio no âmbito das literaturas de expressão portuguesa  (Lisboa, Miradouro de Santa Luzia. Foto:  Miúcha ).



                " A Musa "

Talvez a amasse muito,
talvez não a amase nada,
talvez amasse somente
seu doce perfil na tarde,

ou só seu vestido branco,
ou só as tranças compridas,
ou apenas o passo leve,
ou somente o jeito esguio,

ou o olhar dissimulado,
ou as suaves sobrancelhas,
ou os seios imaturos,
ou a concha das orelhas,

ou só as mãos delicadas,
ou só os pés pequeninos,
ou as panturrilhas, ou
sua cintura tão fina,

ou... Mas eis que tudo amava,
sobretudo o que não via
do que a cabeça sonhava,
do que a roupa lhe escondia.

Tudo amava, de alma inteira,
até ficar quase morto.
E doido - de cometer
um primeiro verso torto.


  Filho, Ruy Espinheira. Elegia de Agosto e outros poemas. Rio de Janeiro: Editª Bertrand Brasil, 2005, pp 177 - 178.
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11/08/13



   Poema 3 do Ciclo " Adeuses "


As vozes da sabedoria
são águas pesadas que despertam
sujeiras e chagas onde tocam.
       Pois nos lembram
o que somos,
o que não queremos
ser,
o que não suportamos
ser,
o que nos desespera
de ser,
como o que foi dito há pouco
e mais verdades reveladoras
de que, por exemplo, somos apenas
sombras
e o mais que conseguimos
são mão cheias de trabalho e vento
que passa.

São vozes que ensinam
ninguém se poder saciar
jamais.
       Vozes
que se querem consoladoras,
mas o que nos dizem é que não há
consolo. Como
saber que somos efêmeros
nos consolará? Que somos breves e nunca
fartos,
por mais densa que seja a felicidade
de hoje,
       ainda maior
que a de Salomão em toda a sua
glória,
porque esta felicidade já vivemos e necessitamos
da felicidade de amanhã, do depois
impossível,
pois a vida
já se vai,
se vai.


   Filho, Ruy Espinheira. Elegia de Agosto e outros poemas. Rio de Janeiro: Editª Bertrand Brasil, 2005, pp 130 - 131.
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   " Outro Dia "


Que tudo se vá
e não volte mais.


Nem como distante
névoa de lembrança.


Que tudo se finde
e só reste cinza.


Da autêntica - sem
trapaça de fênix.


  Filho, Ruy Espinheira. Elegia de Agosto e outros poemas. Rio de Janeiro: Editª Bertrand Brasil, 2005, p 98.
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09/08/13

Urbano Tavares Rodrigues ( 6/12/1923 - 8/8/2013 )

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   Vários têm sido os escritores que me têm marcado, uns pelas características da sua obra, outros pela sua forma de olhar o mundo, outros ainda pela grande lição de vida que todos os dias nos mostravam.
   A primeira vez que me encontrei com Urbano Tavares Rodrigues (aliás, eu dirigia-me sempre a ele por "Professor": a minha geração é ainda daquelas que sempre respeitou as gerações anteriores!) foi numa noite em que a Isabel Aguiar e o marido decidiram comprar bilhetes para irmos todos ver o "Saraband" de Bergman. Foi uma noite muito agradável: durante o intervalo, o ilustre professor deu-me logo uma lição acerca da relação entre Bergman e as cisões amorosas no romance francês do século XVIII. De regresso a casa, sentado no banco de trás do meu carro, o grande senhor explicáva-nos, com minúcia, o seu estado de saúde.
  Outros encontros se seguiram: conservo ainda as dedicatórias generosas que ele me escreveu no seu livro de poesia publicado pela Asa, no seu "Eterno Efémero", etc. Mas conservo sobretudo na memória a última vez em que conversámos: eu estava a organizar "O Prisma das Muitas Cores", quando lhe liguei, ao fim de algum tempo, ouço: " Já pensava que o Victor se tivesse esquecido de mim!" Esta foi uma das maiores lições de grandeza que este senhor me deu!  Esta simples frase! Fui então a sua casa buscar a sua colaboração para a Antologia, ele, com uma alegria sóbria, fez questão de me ler primeiramente o seu "Barranco de violetas"... Eu, naquele momento, senti-me minúsculo! Acabámos depois falando de amigos comuns que ambos admirávamos, sobretudo da Ana Sampaio e da Graça Pires. Depois, com a maior das simplicidades, disse-me que estava cansado e se eu não levava a mal que ele não me acompanhasse, pelo seu extenso corredor, até à porta. Era assim Urbano Tavares Rodrigues: ilustre académico, grande escritor, espírito atento e de uma extrema lucidez, mas também um homem a quem a fama nunca afectou e que foi para a minha geração uma lição de vida e de coerência. Num tempo de artifícios, de celebridades plastificadas, de vulgarização da mediocridade, acabou de partir um grande senhor, um autêntico aristocrata, no sentido socrático do termo.
  Até sempre, Professor!!!
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                                         " O expresso das dez e trinta e dois "
 
 
  O homem tinha adormecido. O despertador do telemóvel não tocara, ou tinha tocado e fora ele que não ouvira. Andava cansado, sim, talvez fosse isso! E já não ia ter tempo para tomar um duche... puxou apenas uns calções que andavam por ali, uma t-shirt, escovou os dentes à pressa e lá saiu ele de roldão. Desceu as escadas a dois e dois com os braços ajoujados de livros, jornais, revistas... Estava atrasado! Mal pôs os pés na rua foi logo de encontro a um jovem, que, com ar nervoso, se amparava à frontaria do prédio. Era um rapaz de pouco mais de vinte anos, t-shirt branca em V e calças verdes acastanhasdas, enfim, um não sei quê de negligência trabalhada. Procura alguma coisa?, perguntou-lhe o homem. Vinha tirar fotografias, estou à procura de um Estúdio, de um Laboratório de Imagem, respondeu o rapaz. Ah, meu caro, a única coisa com boa imagem aqui no prédio sou eu!, respondeu o homem, agressivo. O rapaz olhou-o: barba de três dias, pele gordurosa, ténis desapertados, calções a berrarem à t-shirt, papelada a espreitar por tudo quanto era lado... E lá ficou o rapaz ainda mais confuso: talvez o homem fosse um louco em fase de reabilitação?, deve ter pensado.  Olhe, tenho de tomar já já uma bica, disse o homem enquanto entrava no café. O rapaz segui-o: é que o meu GPS diz que o Estúdio é aqui. A mulher do café apanhou ainda a parte final da conversa e decidiu avançar: ah, ainda bem que encontrou o sotôr, ele ajuda-o já! O rapaz estava cada vez mais baralhado, começou a ver as lombadas dos livros, mexeu nas revistas e decidiu ser preciso: deu o nome da rua, o número... Ah, meu caro - disse o homem - deite o GPS fora, isso é quase no outro extremo da cidade, por acaso até vou para lá. Olhe, está a ver - disse a mulher - o sotôr até lhe pode dar uma boleia! O rapaz ficou nervoso, assustado mesmo. O homem, indiferente, começou a tomar o seu cafézito expresso das dez e pouco. O dono do café, não satisfeito com a confusão, atirou outra acha para a fogueira: aceite a boleia do sotôr, aceite, olhe o último que aceitou uma boleia dele nunca mais apareceu! O homem, que estava a beber o café, não se conteve: deu uma gargalhada de tal modo que o café até lhe saiu pelo nariz. E foi mais ou menos aqui que o rapaz percebeu que tudo era um jogo, que estava em pleno centro de uma peça de teatro. Ó senhor Pedro, disse o homem, não diga isso... aqui o jovem já me deve ter por antipático e arrogante e depois do que está a dizer... O rapaz interrompeu abruptamente o homem: por acaso até aceito a boleia, eu até estou atrasado! Olhe, depois não diga que não o avisei, insistiu o dono do café a rir. Rimo-nos todos. Não repare no carro, disse eu enquanto caminhavamos, não é lavado há três milénios. Quando atirei a livralhada e os papéis para o banco de trás, o rapaz atirou-me ele também mas com a pergunta sacramental: o que é que faz? Eis-me apanhado!: escrevo umas coisitas... aí para uns jornais. É jornalista? Insistiu ele. Sim, menti. O telemóvel dele tocou e eu ouço-o: sim, já sei onde é, um senhor ensinou-me, dentro de vinte minutos estou aí... O rapaz entrou no carro. Quando me chamam senhor sinto sempre que tenho trezentos anos, esclareço-o. Era a minha mãe, que queria você que eu lhe dissesse? Ok, ok, tudo bem!, rematei. A propósito: qual é o seu nome? Insistiu ele. Estou feito!, pensei. Dei-lhe o meu primeiro nome, mas ele não se deu por vencido! Olhe eu vou tirar fotos, chamo-me X. e estou na Companhia de Dança Y, vá, agora é a sua vez. Tentei ainda iludir a resposta: falei-lhe do tempo em que tinha pachorra para assisitir a tudo o que era estreia: Teatro Camões, Teatro Nacional, S. Carlos, etc. O Victor foi amigo da A.? Perguntou-me ele com os olhos esbugalhados. Fui não, sou!, mas ela aposentou-se... aquilo era uma miséria, nem dinheiro havia para as sapatilhas. E calei-me. Hum, você está a mentir-me!, rosnou ele, qual é o resto do seu nome... vá, diga! E sabe porque é que eu sei que está a mentir, é que eu já li coisas suas...Você mentiu-me e eu não menti! Pronto, fui apanhado - encenei um sorriso - qual é a pena? A pena é... é... - e fingiu indecisão - já sei, a pena é ir assistir à minha estreia. Se tiver tempo, tento fugir eu. Se não tiver, vai ter de arranjar, não se esqueça que eu agora sou amigo dos donos do café. Mas... temos pressão? Sim, temos... ah, e não me deixe à porta do Estúdio, não quero que me vejam! Adoro histórias de espiões! remato, cínico. Estaciono ao fundo da rua. Um silêncio enorme. Já não me está a apetecer ir para a sessão de fotografias... e se eu não fosse? Vá, vá-se lá embora, vá-se embora que eu também estou atrasado. Já cá fora, e pela janela do carro, o rapaz estendeu qualquer coisa ao homem... eu não consegui ver bem o que era, mas ainda o ouvi dizer: a propósito, quando estava a arrumar os livros no banco lá atrás deixou cair isto. E o rapaz estendeu qualquer coisa ao homem. Empertiguei-me para ver o que seria, mas, confesso, não percebi bem, suspeito que era um papel com um número de  telemóvel. Suspeito não, tenho a certeza! Essas coisas percebem-se pela forma como os carros recomeçam a andar.
 
V.O.M.
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07/08/13

 
 
Não pronuncies a palavra esperança
ela está fora de ti é vã quando não sabemos
dos círculos que traçamos com o corpo
 
inventa um animal e dança com os passos
suspensos de todas as formas exactas, respira
se necessário cai, cai sem medo
o erguer recomeça sereno
 
anela os afectos sempre que tocares
uma árvore uma flor a água
envolve-te neles profundamente
como se Deus fosse a urgência do Amor
 
tudo o que sabes é um anel que cresce
sem que possas antecipar a ave
que vai migrando nos teus olhos
haverá um momento iminente em que estarás
por detrás do olhar sabendo
que o corpo é uma encruzilhada do tempo
nele os sinais modelam um mapa legado
em cada acto presente
 
colhe o futuro nesse momento
 
 
   Rosa, Gisela Ramos. Tradução das manhãs. Póvoa de Santa Íria: Lua de Marfim Editª, 2013, p 23.
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05/08/13

 
 
  Na realidade, necessitava de uma obra poética para corrigir o destino e mostrar-me diferente daquele ser que um dia figuraria nas biografias oficiais. No íntimo sabia que nada do que escrevia mudaria coisa alguma, mas, por meio de poemas, o meu sofrimento organizava-se, fazendo sobressair as minhas paixões e os meus remorsos. Exprimindo-me por metáforas, limando a última estrofe, a dor decantava-se, mas pouco do que passava a escrito me alcançaria com verdade. Aqueles cantos não deixavam de me desgostar, sabendo eu que sempre se perde o essencial no momento de os escrever. Por entre as matizes da exaltação gloriosa ou da agonia, o meu genuíno pesar era o que não aparecia em verso.
  Cada vez que escrevia uma linha poética corrompia a integridade das minhas mágoas. Era fácil reconstruir as derrotas como a história de um rei letrado que desejava ser perdoado. Era fácil e não passava de uma manobra ignóbil. Havia muitas outras coisas que poderia ter feito de forma a não acabar os meus dias a escrever poemas aos corvos de Aghmât.
  Pouco a pouco habituara-me à ideia de vir a perecer entre as quatro paredes daquela cela. Pensava frequentemente no suicídio como uma libertação, mas não desejava deixar aos meus filhos a recordação desagradável de um rei cobarde, incapaz de suportar mais um martírio. (...) Respirava ainda, mas a única prova de que estava vivo era aquela infinidade quase indestrinçável de pensamentos, sensações e gestos que se bastavam a si mesmos, sucedendo-se uns a seguir aos outros no apertado espaço do cárcere.
 
 
     Silva, Ana Cristina. Crónica do Rei-Poeta Al-Mu'Tamid. Barcarena: Ed. Presença, 2010, p 164.
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04/08/13


 
   Não tardou que os boatos acerca da natureza da minha relação com Ibn Ammar se multiplicassem, tendo chegado aos ouvidos de meu pai. Esses rumores quase provocaram a minha desgraça. As intrigas diversificavam-se, parte do falatório, tendo fundamento, era empolado até níveis absurdos. Acusavam-me de blasfemar contra o Alcorão, de me embriagar com o meu amigo e de me envolver em peripécias amorosas de teor duvidoso. Por meias-palavras faziam-me a injúria de divulgar que me submeteria a todos os caprichos de Ibn Ammar. Nesse ponto as dúvidas aprofundavam-se, tendo sido posta a circular a suspeita de que partilharia com ele repugnantes intimidades. O meu amigo deixava de ser um obscuro comparsa de deboche, onde participariam mulheres de má fama e escravas cristãs, para se transformar no protagonista de uma pérfida influência.
   O emissário do meu pai chegou a Silves quando eu estava prestes a fazer dezoito anos. Eu podia ser o príncipe herdeiro, mas ele recebera ordens directamente do emir e escusou-se a escutar os meus argumentos. As suas ordens eram muito claras: deveria regressar imediatamente com ele à corte de Sevilha. Era aguardado no espaço de uma semana. Apenas consegui que Maha, grávida do meu primeiro filho, me acompanhasse nessa sentença de exílio.
   A minha entrega a Ibn Ammar tinha a sua inocência; era quase tão frágil como qualquer paixão. Sofri muito por não saber se os afectos resistiriam à separação. Ele riu-se do meu jeito infantil de fazer beicinho naquela madrugada fria em que nos despedimos. Aquela amizade - era nesses termos que nomeava os meus sentimentos - começada de forma tão invulgar, enriquecera-me como nenhuma outra. Foram estas as palavras que usei para lhe explicar como dava valor à nossa relação. Abraçámo-nos uma última vez antes de montar o meu cavalo. Revejo a sua cabeça inclinada como que numa vénia trocista, olhos que me observavam sob um véu de ternura, exibindo, no entanto, uma espécie de alívio por me ver partir. Já me afastava quando me lembrei de que Ibn Ammar deixaria de ter quem provesse ao seu sustento. Voltei atrás e, evocando já não sei que pretexto, dei-lhe à socapa todas as moedas de ouro que trazia comigo. Aproveitando a oportunidade, ele aproximou-se do meu ouvido e sussurrou: "A nossa história não acaba aqui, mesmo que por agora nos separem e cada um siga o seu caminho." A afirmação continha qualquer coisa de profético, uma espécie de entendimento secreto, cujo alcance ultrapassava a própria vontade de cada um.
 
 
  Silva, Ana Cristina. Crónica do Rei-Poeta Al-Mu'Tamid. Barcarena: Ed. Presença, 2010, pp 57 - 58.
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03/08/13

 
 
   Naquele Natal, depois da conversa com Nuno, a angústia foi mais forte, o peito doeu mais, tinha perdido uma oportunidade de dar uma volta à minha vida, de ter mais um amigo e, por via disso, encontrar alguém com quem pudesse ser feliz, expressão esta que se usa aqui por falta de melhor, o que é ser-se feliz, é-se feliz ou têm-se momentos felizes, na altura não sabia, tinha vivido muito pouco ainda, hoje sei que se têm momentos felizes, a felicidade como estado de espírito permanente é uma mentira, uma impossibilidade, não se pode ser feliz cada segundo de um dia, há um copo que se parte e espalha água por todo o lado, há um telefonema de alguém que não se cala, há uma dor de cabeça, há um momento de ansiedade, há um gesto infeliz, portanto a felicidade é uma fantasia boa para as novelas e os anúncios de televisão, veio isto a propósito do meu desejo de encontrar alguém com quem pudesse partilhar momentos felizes, quem não o deseja, afinal, mas a cobardia da minha atitude para com Nuno adiou essa possibilidade.
 
 
   Lima, Joaquim Almeida. Ensaio sobre a Angústia. Lisboa: Gradiva, 2012, pp 76 - 77.
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02/08/13


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"Paixões Proibidas" (Two Mothers, 2013) é o novo filme da luxemburguesa Anne Fontaine baseado num conto da escritora britânica Doris Lessing (Prémio Nobel, 2007). Filme arrojado sobre o amor, a amizade e o poder, Two Mothers é um poderoso testemunho sobre o que une os seres humanos ou sobre aquilo que os poderá também desunir, esta obra é igualmente um corajoso afrontar de vários dos padrões da conformidade veiculados pela moral burguesa, que dogmaticamente se firmam como modelos normativos da ação ético-moral. Nesta película, duas amigas de infância - Lil (Naomi Watts) e Roz (Robin wright) - acabam por, anos depois, se apaixonar pelos filhos uma da outra - Ian (Xavier Samuel) e Tom (James Frecheville) -, este relacionamento, claustrofóbico e obsessivo, começa a desmoronar-se quando Tom se envolve com uma jovem da sua idade. As duas mulheres decidem, num rasgo de lucidez perante um envelhecimento que se avizinha, cortarem cerce a situação. Os dois jovens casam, têm filhas e lá vemos, então, as duas famílias "felizes" a caminho da praia com as duas "jovens-avós" mimando as netas. Tudo estaria "normal", tudo estaria equilibrado e bem arrumado nas prateleiras do socio-moral, tudo seria o melhor dos mundos não fora apenas uma coisa... uma coisa pequeniníssima, ínfima mesmo: é que nisto da atração entre os seres a vontade e a razão, por mais cenários que montem, contam muito pouco: Tom volta a reatar a sua relação com Lil, o filho desta, por sua vez, assedia Roz... e um dia as jovens esposas acabam por descobrir tudo e abandonam os maridos levando as filhas, o que, aliás, parece aliviá-los, sobretudo a Ian... Naquele círculo fechado, confirma-se: não cabe mais nada a não ser essa qualquer coisa de que os quatro não conseguem, nem querem, libertar-se, e que os puxa para um universo solar, uterino (a presença do mar e do sol é recorrente!) e onde apenas o presente conta (Ian chega mesmo a prometer a Roz, ante os pedidos dela, que jamais a deixará envelhecer!)... Doris Lessing é, decididamente, uma das minhas romancistas, e o filme é um arrebatado momento poético. A não perder!
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