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08/08/11
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" A Minha Musa "
A minha Musa está longe: dir-se-ia
(é o pensamento dos mais) que nunca existiu.
Se houver porém uma, veste-se com os trapos de um espantalho
posto a custo num xadrez de vinhas.
Abana como pode: resistiu a monções
ficando de pé, só um pouco encurvada.
Se o vento cessa sabe agitar-se ainda
como que a dizer-me caminha sem receio,
logo que te possa ver dar-te-ei vida.
A minha Musa deixou há algum tempo um guarda-roupa
de teatro; e quem com ele se vestia
era da alta sociedade. Um dia foi preenchida
por mim e muito se ufanou. Agora resta-lhe ainda uma manga
e com ela dirige o seu quarteto
de flautas de cana, é a única música que suporto.
Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
p 279 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos )
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" La belle dame sans merci "
Claro que as gaivotas cantonais esperaram em vão
as migalhas de pão que eu deitava
para a tua varanda para que ouvisses
os seus gritos mesmo fechada no teu sono.
Hoje faltámos ambos ao encontro
e o nosso breakfast gela entre pilhas
para mim de livros inúteis e para ti de não sei
que relíquias: calendários, estojos, frasquinhos e cremes.
Assombroso o teu rosto obstina-se ainda, recortado
nas telas de cal da manhã;
mas uma vida sem asas não o alcança e o seu fogo
sufocado é fulgência de isqueiro.
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Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
p 257 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos ).
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" La belle dame sans merci "
Claro que as gaivotas cantonais esperaram em vão
as migalhas de pão que eu deitava
para a tua varanda para que ouvisses
os seus gritos mesmo fechada no teu sono.
Hoje faltámos ambos ao encontro
e o nosso breakfast gela entre pilhas
para mim de livros inúteis e para ti de não sei
que relíquias: calendários, estojos, frasquinhos e cremes.
Assombroso o teu rosto obstina-se ainda, recortado
nas telas de cal da manhã;
mas uma vida sem asas não o alcança e o seu fogo
sufocado é fulgência de isqueiro.
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Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
p 257 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos ).
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"A Enguia"
A enguia, a sereia
dos mares frios que deixa o Báltico
para chegar aos nossos mares,
aos nossos estuários, aos rios
que sobe em profundidade, sob a corrente adversa,
de ramo em ramo e depois
de cabelo em cabelo, adelgaçando-se,
cada vez mais dentro, cada vez mais no coração
da rocha, insinuando-se
nos sulcos do lodo até que um dia
a luz solta dos castanheiros
acende o seu vibrar deslizante em poças de água estagnada,
nas fossas que descem
das faldas dos Apeninos à Romagna;
a enguia, tocha, chicote,
flecha de Amor em terra
que só as nossas ravinas ou os secos
arroios pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a alma verde que procura
vida nesse lugar onde apenas
morde a canícula e a desolação,
a centenha que diz
tudo começa quando tudo parece
fossilizar-se, tronco sepultado;
a íris breve, gémea
daquela que engastam os teus cílios
e fazes brilhar intacta entre os filhos
dos homens, imersos no teu lodo, serás tu capaz
de não a achar tua irmã?
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Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
pp 215 - 271 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos).
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"A Enguia"
A enguia, a sereia
dos mares frios que deixa o Báltico
para chegar aos nossos mares,
aos nossos estuários, aos rios
que sobe em profundidade, sob a corrente adversa,
de ramo em ramo e depois
de cabelo em cabelo, adelgaçando-se,
cada vez mais dentro, cada vez mais no coração
da rocha, insinuando-se
nos sulcos do lodo até que um dia
a luz solta dos castanheiros
acende o seu vibrar deslizante em poças de água estagnada,
nas fossas que descem
das faldas dos Apeninos à Romagna;
a enguia, tocha, chicote,
flecha de Amor em terra
que só as nossas ravinas ou os secos
arroios pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a alma verde que procura
vida nesse lugar onde apenas
morde a canícula e a desolação,
a centenha que diz
tudo começa quando tudo parece
fossilizar-se, tronco sepultado;
a íris breve, gémea
daquela que engastam os teus cílios
e fazes brilhar intacta entre os filhos
dos homens, imersos no teu lodo, serás tu capaz
de não a achar tua irmã?
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Eugenio Montale in " Poesia ", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
pp 215 - 271 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos).
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04/08/11
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LITORAIS
bastam alguns talos de piteira
pendurados de um rebordo
no delírio do mar;
ou duas camélias pálidas
nos jardins desertos,
e um alourado eucalipto que mergulha
entre batimentos de asa e loucos voos
na luz;
e eis que num instante
invisíveis fios em mim se enrolam como serpentes,
borboleta numa teia de aranha
frémitos de oliveiras, olhares de girassóis.
Doce cativeiro, agora, litorais
de quem se entrega um pouco
como que a reviver um antigo jogo
nunca olvidado.
Recordo o acre filtro que estendeste
ao confuso adolescente, oh margens:
nas claras manhãs fundiam-se
dorsos de colinas e céu; na areia
das praias era um amplo bater, um igual
fremir de vidas,
uma febre do mundo; e todas as coisas
pareciam consumir-se nelas próprias.
Oh então revolvidos
como o osso do choco pelas vagas
desaparecer a pouco e pouco;
tornar-se
uma árvore rugosa ou uma pedra
polida pelo mar; fundir-se nas cores
dos ocasos; desaparecer carne
para ressurgir nascente ébria de sol,
pelo sol devorada...
Eram estes,
litorais, os votos do menino de outrora
que junto a uma ferrugenta balaustrada
lentamente morria sorrindo.
Até que ponto, marinas, estas frias luzes
falam a quem destroçado vos fugia.
Lâminas de água caminhando
por entre os ramos que se movem; rochas escuras
entre a espuma; flechas de gaivões
vagabundos...
Sim, podia
acreditar um dia em vós ó terras,
belezas funerárias, áureas cornijas
na agonia de cada ser.
Hoje volto
até junto de vós mais forte, ou estarei enganado, se bem que o coração
pareça abrir-se em recordações ledas e atrozes.
Triste alma passada
e tu vontade nova que me chamas,
tempo é talvez de vos unir
num sereno porto de sabedoria.
E um dia virá ainda o convite
de vozes de ouro, de lisonjas audazes,
alma minha nunca mais dividida. Pensa:
mudar para hino a elegia; refazer-se;
não faltar mais.
Poder
tal como estes ramos
ontem descarnados e nus e hoje cheios
de frémitos e linfa,
sentir
amanhã também por entre os perfumes e os ventos
um refluir de sonhos, um louco urgir
de vozes rumo a um fim; e no sol
que vos inunda, litorais,
tornar a florir!
Eugenio Montale in "Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
pp 135 - 139 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos ).
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LITORAIS
bastam alguns talos de piteira
pendurados de um rebordo
no delírio do mar;
ou duas camélias pálidas
nos jardins desertos,
e um alourado eucalipto que mergulha
entre batimentos de asa e loucos voos
na luz;
e eis que num instante
invisíveis fios em mim se enrolam como serpentes,
borboleta numa teia de aranha
frémitos de oliveiras, olhares de girassóis.
Doce cativeiro, agora, litorais
de quem se entrega um pouco
como que a reviver um antigo jogo
nunca olvidado.
Recordo o acre filtro que estendeste
ao confuso adolescente, oh margens:
nas claras manhãs fundiam-se
dorsos de colinas e céu; na areia
das praias era um amplo bater, um igual
fremir de vidas,
uma febre do mundo; e todas as coisas
pareciam consumir-se nelas próprias.
Oh então revolvidos
como o osso do choco pelas vagas
desaparecer a pouco e pouco;
tornar-se
uma árvore rugosa ou uma pedra
polida pelo mar; fundir-se nas cores
dos ocasos; desaparecer carne
para ressurgir nascente ébria de sol,
pelo sol devorada...
Eram estes,
litorais, os votos do menino de outrora
que junto a uma ferrugenta balaustrada
lentamente morria sorrindo.
Até que ponto, marinas, estas frias luzes
falam a quem destroçado vos fugia.
Lâminas de água caminhando
por entre os ramos que se movem; rochas escuras
entre a espuma; flechas de gaivões
vagabundos...
Sim, podia
acreditar um dia em vós ó terras,
belezas funerárias, áureas cornijas
na agonia de cada ser.
Hoje volto
até junto de vós mais forte, ou estarei enganado, se bem que o coração
pareça abrir-se em recordações ledas e atrozes.
Triste alma passada
e tu vontade nova que me chamas,
tempo é talvez de vos unir
num sereno porto de sabedoria.
E um dia virá ainda o convite
de vozes de ouro, de lisonjas audazes,
alma minha nunca mais dividida. Pensa:
mudar para hino a elegia; refazer-se;
não faltar mais.
Poder
tal como estes ramos
ontem descarnados e nus e hoje cheios
de frémitos e linfa,
sentir
amanhã também por entre os perfumes e os ventos
um refluir de sonhos, um louco urgir
de vozes rumo a um fim; e no sol
que vos inunda, litorais,
tornar a florir!
Eugenio Montale in "Poesia", Assírio & Alvim, Lisboa, 2004,
pp 135 - 139 ( Tradução de José Manuel de Vasconcelos ).
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