01/07/13

Acerca de... (XV)



            "  Por uma estética do exílio  "

   A Irresistível Voz de Ionatos, de Victor Oliveira Mateus, é um livro que se lê de uma assentada, tanto pelo galope seguro com que o texto nos conduz, quanto pela estrutura com que foi concebido.
   São vinte e sete poemas, ou vinte e sete seções de um só poema, que têm como cenário uma ilha ( ou ilhas ) da Grécia, e, por motivo central, uma evocação amorosa ( ou a evocação sucessiva de uma falta ) em que se vão tecendo imagens e considerações sobre a natureza do desejo, do tempo, da morte e da própria poesia. Como nas óperas de Wagner, certos temas aparecem e reaparecem sutilmente associados a diferentes imagens, deixando-nos a intuição de que seu significado mais profundo, embora se intensifique, nos escapa. 
 
 
(...) Ilha para lá do vazio, da felicidade imitada,
dos escombros: terra finalmente alcançada com o teu
braço sobre os meus ombros. Nenhum mal a poderia
já extinguir como marco nunca havido, nem a persistente
 
fragrância a si própria acrescentada de sêmen e saliva
- de nós húmidos rastros - no abandono dos cômoros, nem
tão-pouco as terríveis perdas, que nas cidades fervilham
em correria inóspita e vã, parecer por nós recusado
quando à ilha havíamos chegado naquela extrema manhã.
 
 
   Assim começa o livro, insinuando uma subjacente narrativa que se irá construindo e consumindo conforme nos familiarizamos com suas idas e vindas. E a ilha, com suas luzes e destroços, com seus bares atarefados e seus pescadores, com seu relevo e o branco compacto de suas casas, se vai amalgamando à sensação de perda, ao perdedor e ao perdido:
 
(...) Tenho saudades
do ritual dos peixes, do rumor
inconsolado da brisa a soar
mansa no abandono dos búzios,
do emaranhado das algas
a envolver-nos a prontidão
dos passos. Tenho saudades
de mim nesses tempos,
quando não tinha saudades.
 
   Aqui e ali, surgem composições menos reflexivas e de maior carga confessional, como em:
 
 
Nunca soube lançar o pião
como os rapazes no terreiro,
entre os contentores: aprendizes
de ladrões, de proxenetas,
 
arrumadores. Nunca soube
lançar o pião. Nem puxar-lhe
o cordel entre os dedos
ou içá-lo, rodopiante, na palma
 
da mão, acima do solo,
conspurcado e mudo. Lancei
a minha vida, os meus
anseios. E foi tudo.
 
   Ressaltemos que Victor, como Nerval ou Rimbaud, não parece conceber distinção de fato entre a poesia e a prosa. Ou melhor, não concebe diferenças de gênese entre uma e outra forma de expressão literária do " princípio poético " - para usar aqui o conhecido nome que deu Edgar Poe a essa súbita elevação, essa comoção de que somos tomados diante da obra de arte.
   Seus poemas de nada se desincubem, recuperando atribuições quase esquecidas pela poesia contemporânea. Seus versos descrevem, narram, comentam. E o fazem afastando-se tanto do minimalismo e da sintaxe nominal, tão caros aos nossos dias, quanto da mera poesia didático-discursiva. Assim também que, não raro, o poeta intercale interjeições, interrompa-se, reformule idéias e imagens, quebre frases em dois versos ( ou mesmo em duas estrofes ) sem incorrer no virtuosismo vazio ou na hesitação de estilo.
   Por vezes, o efeito de sua escrita jaz na simplicidade do recorte:
 
Azul que em azul te desdobras.
Cerco de baías. Moldura de espuma.
 
Noutras, é obtido pela inserção explícita de expressões comparativas ou de vaguidão em suas analogias:
 
A mulher da loja em frente traz consigo
algo das antigas deusas. Das possuídas
sibilas. (...)
 
   Dito melhor: Victor escreve no limite entre a poesia e a prosa, e nos faz crer que o faz sem perigo - quando, nesse perigoso limite, muitos poetas de diversos calibres se têm perdido. Produzindo muitas vezes prosa poética, que apenas da forma usual da poesia se apropria, assume certo sabor clássico, como em:
 
                                              ( ...) enquanto a impreterível
presença das pontes vinca este doce gorjeio que, sempre
em nós acrescentado, impedir não tentamos nem podemos.
 
   Porém, à revelia das inversões sintáticas e do vocabulário, o resultado soa natural. Como se o poeta pensasse alto e no ritmo que as palavras já trazem consigo.
   Borges, que também ignorava distinções genéticas entre a prosa e a poesia, já dizia que o tempo lhe ensinara que as melhores metáforas são as mais familiares - a morte e o sono, o crepúsculo e a velhice... Se concordamos com ele, concordaremos também com Victor Oliveira Mateus na eleição de sua ilha como imagem atemporal da distância, da perda, do exílio. Distância voluntária, e talvez segura, na qual pode ele retomar temas da tradição sobre os quais, contudo, sempre há o que ainda ser dito. Exílio em que pode exercitar seu estilo fluido e sincrético, a despeito das precárias e provisórias noções do que seja atual ou antigo.
 
 
     Cláudio Neves, in A Irresistível Voz de Ionatos de Victor Oliveira Mateus. Fafe: Editora Labirinto, 2009, pp 41 - 43.
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