25/09/09




Que noite escura! Que noite escura!
Bramem as ondas cavernosas...
A grande armada vai largar...
Oh, a armada do rei!... oh, as naus pavorosas
Na escuridão, turbilhonando, a baloiçar!...
São esquifes mortuários,
São féretros com velas de sudários,
Tumbas negras nas ondas a boiar!...
Ai que gemidos, que alaridos
De multidões na praia, olhando o mar!...
Lá vem o rei... lá vem a côrte... e luzes, luzes
De brandões, de tocheiros a sangrar...
Vai a embarcar?... vai a enterrar?... Não trazem cruzes,
Nem há sinos por mortos a dobrar...
Oh, a lúgubre, estranha comitiva
A bandada de espectros singular!...
É gente morta?... é gente viva?...
Procissões de defuntos a marchar!...
Cortesãos, cavaleiros e soldados,
Tudo esqueletos descarnados,
Olhos de treva e crânios de luar!...
Ladeiam côches fúnebres doirados...
São os côches d'El-Rei... vai a enterrar?...
Lá se apeiam as damas das liteiras...
Gestos de manequins, rir de caveiras...
Fitas e plumas sôltas pelo ar...
Olha a rainha, vem em braços, morta e doida.
Morta e doida a clamar que a vão matar!...
E o rei!... olhem o rei!... que rei de entrudo!...
Um porco em pé, com manto de veludo
E c'roa na cabeça, a andar, a andar!
Mas reparem... tem cornos! é cornudo!
Dois chavelhos de boi no seu logar!
Um rei, que é porco e tem chavelhos!
Um rei que é porco e tem chavelhos!
Que fantasia! enlouqueci!... ando a sonhar!...
Mas bem no vejo! eu bem no vejo,
C'roa de rei, tromba de porco e chifres no ar!...
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Cái de rastros, chorando, o povo inteiro,
Beija-lhe a côrte as patas e o traseiro...
E êle a grunhir! e êle a roncar!...
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Lá vão as naus... lá vai o rei com seus tesoiros...
E lá ficam na praia, como agoiros,
As multidões soturnas a ulular! ...
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Olha uma águia rubra, uma águia bifronte,
Incendiando o horizonte,
A voar, a voar, a voar!...
Ai dos rebanhos!... ai dos rebanhos!...
Águia de extermínios, onde irás poisar?!
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Guerra Junqueiro In "Pátria", Livraria Chardron, de Lélo & Irmão,
Porto, 1912 (Quarta Edição), pp 129 - 131.
NOTA: este poste mantém a grafia de 1912.
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