10/09/12


   O Amor é, de facto, o principal tema de toda a lírica camoniana - como é n' Os Lusíadas, uma das grandes linhas que movem, organizam e dão sentido ao universo, elevando os heróis à suprema dignidade de, através dele, atingirem a divinização.
   Na Lírica de Camões, o amor é, contudo, fonte de contradições vivamente sentidas: ele é sucessivamente "fogo que arde sem se ver", "ferida que dói e não se sente", "contentamento descontente" - daí que dificilmente ele possa trazer consigo a alegria e a paz. É algo de indefinível ou, nas próprias palavras do Poeta, "um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê".
   O amor aparece nestes poemas sob uma dupla abordagem. Uma é a sua abordagem à maneira petrarquista, de raiz provençal e neoplatónica. Trata-se de um amor espiritualizado, em que não se vislumbra o corpo dos amantes, que se compraz na adoração e contemplação do ser amado e que leva a que o amador se "transforme" na "cousa amada". Num amor assim vivido, a ausência da amada não só não é sentida com dor, mas é encarada como ocasião de purificação do sentimento amoroso. A mulher amada, encarada como reflexo da beleza divina, é a ponte para a perfeição do "amador". Assim, ela não é retratada com traços fisionómicos precisos - a sua beleza, que é grande, reside sobretudo no olhar, "brando e piedoso", na postura "humilde", na bondade; o seu retrato é um retrato psicológico da perfeição e pureza que dela emanam. Regista-se a impressão que a sua beleza causa, e não os traços de que essa beleza é feita. Trata-se de um ser sublime, divinizado, que se movimenta numa natureza alegre, colorida, paradisíaca. (...) Mas o amor aparece também visto sob outro aspecto, numa outra abordagem. Camões, senhor de uma "longa experiência" de vida, apercebe-se da enorme distância que vai do pensamento à realidade vivida - e sente, mais violentamente que Petrarca, que a vivência quotidiana do amor, longe de trazer tranquilidade e paz, se for dela excluído o factor erótico, traz inquietação e perturbação. (...)
   Da tensão (...) entre o amor espiritual e o amor sensual, resultam, para quem ama, conflitos interiores, perplexidade, contradições, angústia. O sentimento amoroso torna-se motivo de perturbação; a mulher amada transforma-se em "fera", em "Circe", que enfeitiça, destilando no amador o "mágico veneno" e transformando-lhe o pensamento; a ausência e a morte da amada passam a constituir ocasião de dúvida, ciúme, angústia, "mágoa sem remédio".

  Pais, Amélia. Eu cantarei de amor - Lírica de Luís de Camões. Porto: Editª Areal, 1ª edição.
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