03/05/11

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                  "O Regímen"


A sociedade portuguesa está organizada para o mal. Não é já o mal esporádico e fortuito, em casos  isolados que ràpidamente se combatem. Não; é o mal colectivo, o mal em norma de vida, o mal em sistema de governo. Os poderes funcionam deliberadamente com um fim: produzir o mal. Porquê e para quê? Porque o mal são eles e querem conservar-se. Um regímen corrupto só na corrupção subsiste. Mantém-se na corrupção, como alguns bacilos na porcaria. O seu ódio ao bem é fundamental e orgânico.
A filosofia da vida dum tal regímen é a filosofia do porco: devorar.
Mesa, cama e comua, eis a sua trindade verdadeira. Vive na carne e para a carne. Sensualismo tenebroso, regressão do homem à bestialidade do quadrúpede.
Ora, um regímen assim há-de, por natureza, absorver o mal e repelir o bem. Desde que o mal é a sua própria essência, o bem constitui a sua negação e a sua morte, o bem é o adversário. Portanto elimina-se.
Mas como semelhante compreensão da vida e do destino do homem é, por monstruosa, inconfessável, envolve-se o crime na mentira, esconde-se a chaga em linhos brancos.
Assim, o regímen declara-se cristão, organizando e mantendo um clero de apóstolos que difunda nas almas a verdadeira doutrina de Jesus: amor, humildade, pobreza, desprendimento, subordinação da vida da carne à vida angélica do espírito.
E, além de bom, declara-se justo. Nas suas escolas aprendem a justiça os que hão-de exercê-la e distribui-la no pretório. E nenhuma lei será lei antes de aprovada em cortes pela vontade nacional.
E, além de bom e justo, declara-se forte. Conta vinte mil homens, armados em guerra, para manter a paz, escudar a lei e sustentar o direito.
Mas tudo um engano, uma fraude, uma hipocrisia descarada.
O regímen, pelos homens que o exercem, denota um fim: viver estùpidamente, cinicamente, a vida bruta da matéria. Os poderes que o ajudam são coniventes e são cúmplices.
Assim, o clero é um desaforado instrumento do regímen. Espionagem de almas, batotas de eleições.
Assim a justiça é a vontade do regímen. Ele acusa, ele condena, ele absolve. Quando quer e como quer.
Assim, os deputados são, ordinàriamente, os lacaios do regímen. Dão-lhes decretos a aprovar, como se dão botas a engraxar.
Assim, o exército é a garantia imutável do regímen. Defende-o contra o povo, guarda-o contra a justiça e contra a lei!
Que significa então este regímen? O imperativo da besta, a ditadura do mal. Converte a religião em sacrilégio, o direito em crime, a verdade em burla, a força em tirania.
Os seus amigos são os inimigos da alma. Odeia o Espírito, porque o Espírito é bom, é belo, é justo, é verdadeiro. Repele a arte, repele a virtude, repele a ciência: com hipocrisia, é claro. Deixa livremente rezar o santo, meditar o sábio ou cantar o poeta. Mas o santo há-de perder a alma, o sábio há-de perder a voz e o poeta há-de perder a vergonha, diante das mentiras, das iniquidades e das infâmias do regímen (...)
Regímen hediondo! Assassino de Deus, coveiro das almas.
Hipérbole? não. É vulgar, banal, burlesco, olhado em Lisboa, anedòticamente, com olhos de ironia. Mas, olhado no tempo e no espaço, perante Deus, avoluma, caliginoso, em monstro formidável. Surge demoníaco. Dissolve, destrói, desfaz, desorganiza. A ruína bruta é ainda o menos. Uma parede no chão, levanta-se; um mercado perdido, encontra-se; um banco sem ouro, atulha-se de ouro fàcilmente. Mas a ruína moral! A morte de milhões de almas, milhões de ideias, de consciências! A abóboda estrelada do pensamento vestindo-se de noite fúnebre, noite de caos! Horroroso! pavoroso!
Regímen sinistro! És a árvore da morte, a árvore do mal. A tua sombra esterilizou o nosso campo; os teus frutos gelaram o nosso coração. Quebrar-te um ramo ou espezinhar-te um fruto, para quê? Deitarás mais ramos, deitarás mais frutos. O que é necessário, árvore tenebrosa, é arrancar-te pela raíz e fazer contigo uma fogueira. Depois aremos o campo, semeemos o trigo...

  Guerra Junqueiro in " Horas de Luta ", Lello & Irmão Editores, Porto, 1954, pp 95 - 98.

Nota: este texto de Junqueiro está datado de 15 de Novembro de 1899 e, como é hábito, conservo sempre a grafia das obras, daí, portanto, os advérbios de modo estarem acentuados.
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