24/05/11

Apresentação do livro "reflexões à boca de cena"

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 REALIDADE E REPRESENTAÇÃO NA POESIA DE JOÃO RICARDO LOPES

"reflexões à boca de cena" de João Ricardo Lopes, quer pelo título quer por alguns dos seus elementos constitutivos, poder-nos-ia levar a considerar, segundo um olhar apressado e desatento, que estamos perante um livro de poesia tomando a dramaturgia como seu nó central e aglutinador. Contudo, na minha leitura, este aceno interpretativo é marca de uma ambiguidade procurada que irá funcionar como chave da real preocupação da obra, isto é, o território da teatralidade não é mais do que um pré-texto daquilo que ao poeta se impõe de modo insofismável - o ser humano enquanto actor social... com os seus desencantos, os seus rasgos de lucidez, as suas paixões.
Ao carácter abrupto do início da obra: abre-se o pano e eles existem (p 8), segue-se um desfilar de figurantes - qual corso atribulado e premonitório - que atravessa todo o palco-cidade onde somos chamados a estar: os que vociferam de calças na arregaçadas (p 8), bobos e anões, cuspidores de fogo/ a meretriz das sardas... ( p 12), um borrachão com a língua de fora, assim como os cães vasculham a noite (p 28). De imediato me agradou esta concepção do labor poético que tão bem articula o esquadrinhar contínuo do mundo interior, que tem um dos seus pontos altos no poema O actor olha-se ao espelho (p 70):

não esperes tanto por mim
não tenho futuro
como passado não tive.
belo talvez seja
porém cru
não menos que estátua
nem melhor do que areia.
como toda a criatura
o que sou não sou.
as mãos ardem-me de frio
e talvez esteja já morto
ou longe de mais.
não esperes tanto por mim
não sabes quem esperas

(este belíssimo solilóquio traz para o proscénio um dos mais interessantes temas de reflexão sobre poesia: a relação do eu com o seu duplo) com um olhar atento e perscrutador do mundo exterior - veja-se, por exemplo, um excerto do poema No centro do palco ( p 56):

no centro do palco as lâmpadas e os adereços
descascam amorosamente batatas
limpam o ranho à filhota das tranças
a plateia está absoluta no encalço da cena
só respiração e alguma tosse medindo
a qualidade de representação.
(...)
uma diversão a vida, um estaleiro de pequenos poemas
( e quem precisa dos enormes?), uma pantomina.
e no fim as palmas, as palmas abundantes
o aceno imprescindível da multidão (sê-lo-á?)
bravos, euforia, teatro delicado
é isto a vida, isto sim, a poesia

Este equilíbrio, este subtil - e arguto - doseamento do interno e do externo, este relacionar que adquire mesmo foros de miscigenação, é, no meu entender, um dos pontos altos da voz poética de João Ricardo Lopes: viver é estar num palco de múltiplos cenários, viver é representar dados papéis repletos de conflitos (não só inter-papeis, mas também intrapapel!), viver é esta incessante procura de um Equilíbrio Instável ( tomando agora de empréstimo - assumidamente - o título da peça de Edward Albee, que Tony Richardson passaria exemplarmente para o cinema com a mítica Katharine Hepburn), equilíbrio entre o dentro e o fora de nós, mas viver é, acima de tudo, a lucidez e a fidelidade: a nós próprios, aos que nos amam ( porque no esboroado palco do hoje já só esses contam!), ao indizível milagre de estarmos vivos neste espaço que nos foi concedido e de que urge cuidar. Quanto ao exterior, ele irrompe em vários poemas deste livro:

(...)
este circo engraçado, colorido, oco por dentro
tanto como por fora - frágil sim, como na moleirinha
dos teus sonhos

  ( p 10)

(...)
há entre nós esta cidade inteira
esta lâmina de silêncio que nos
atravessa ao meio...

  (p 30)

Este estado de alma do sujeito-poético, que é simultanemanente desorientação e vontade de resistir, perpassa toda a obra unindo-se a uma dicotomia que o autor expressa nas mais diversas situações - a escuridão e a luminosidade:

com a boca às escuras, a minha saudade
ela apenas, escuta-a, escuta-a só

  ( p 20)

A noite é para não dizer nada.

  ( p 42)

é na sombra a mais possível das germinações
na penumbra, no poema
na esquina obscura de todo o palco

  ( p 74)

Interessante é também o facto de João Ricardo Lopes não conceder à referida luminosidade nenhum estatuto redentor, antes pelo contrário: todo a emergência do possível encontra-se constante e ininterruptamente  ameaçada:

  "Ruído"

tudo o que disse não disse.
luzes negrentas cevando os olhos
como se cedo fosse já tão tarde.
uma janela declina sobre nós
a pálpebra rude e silenciosa.
que tenha valido a pena. Tudo

  ( p 46)

Frente à lucidez com que se observa o palco e cujas variáveis nos têm sido mostradas, e fundamentadas, nas últimas décadas; frente a esta representação fétida e de mau gosto esventrada à saciedade por vários autores: o vazio e o consumismo (por Baudrillard, Lipovetsky, etc.), a ganância e a perversa manipulação do outro, apenas para que a gratuita exibição de poder conste ( por Singer, Hirigoyen, etc.), enfim, frente a uma cidade esfacelada e à deriva, o eu-poético resgata a ousadia da espera e da reinvenção:

" Alquimicamente"

também eu possuo uma retorta enganadora.
transformar em ouro o teu coração de pedra
nunca foi fácil e o fracasso sacode-me o sono em
estremeções desalmados, sou eu quem te
chama e há um caminho de árvores entre nós.
és longínqua e ris de cada vez que me explode
a decepção e eu juro acabar assim, esfarrapado
vencido e sem ti. mas o poema renasce e eu
renasço devagar. um coração de ouro é coisa de
que não se desiste. Nem até à loucura, nem até ela

   ( p 60)

João Ricardo Lopes coloca a sua escrita no seio desse paradigma que é o do sentir e ser do homem contemporâneo e acerca do qual tanto se tem escrito também nos últimos anos, veja-se. por exemplo, "Les uns avec les autres - Quand l'individualisme crée du lien" de François de Singly. Nesta poesia estamos perante um lirismo que respira e traduz, não só temas que são de todos os tempos, mas também inquietações bem delineadas no hoje, aliás, e já que falei da obra de Singly, poderei acrescentar que a situação de desacerto com o mundo em que se encontra o eu-poético é atenuada fortemente, mas jamais resolvida, pela presença da amada. Contudo - e pormenor interessante - esta amada, tal como a peça do primeiro verso do livro, surge abruptamente; as suas aparições são sempre da ordem do contingente e do ameaçado ( cf. p 14, o poema que dá o nome ao livro); a amada traz consigo algo de salvífico, todavia é sempre de uma salvação possível de que se fala, jamais de uma salvação necessária: o poema "Ligústia" ( p 40) traduz de forma magistral esta carência, já que, apesar da amada ser tão bela, a noite não cessa de vigiar o poeta, de o procurar. Há, pois, uma falha essencial na alma desta voz, um espaço impreenchido - e impreenchível -, uma clareira onde todo o mundo poderia caber, mas de onde a sua poesia e a sua busca extravasam. Dizem os grandes estudiosos destes temas ( e estou a lembrar-me dessa figura enorme que foi Martine Broda) que esta busca fundamental (da Coisa) é a marca dos grandes poetas, pois eu - qual eterno aprendiz como Sérgio! - encontrei-a nesta obra de João Ricardo Lopes. E não apenas isso: a extrema poeticidade deste livro e a pertinente acuidade com que se olha temas e subtemas acabam desembocando numa apurada estrutura concebida para enfatizar os intentos originários do autor: à permanência do palco, à sucessão dos actos, às intermináveis reflexões mesmo ali à boca de cena, terá corresponder a figura óbvia, e desalentadamente rotineira, da continuidade da peça. Por tudo isto, à medida que o livro de vai aproximando do seu fim, ele aproxima-se igualmente de um princípio - veja-se este excerto do penúltimo poema:

 "Regressar"

regressar regressa-se de muita maneira
a casa, à noite, às vezes, nunca mais, para sempre.
mas igualmente a depois da casa, a nós próprios
ao toque da mobília, ao cheiro do sabonete
a outros tempos, à altura em que, a de novo agora
...
porque é assim a vida, porque inifinita graça é a de
emendar a réplica, porque sim, porque assim é o
teatro do coração, porque redondo é o olhar
porque no fim é o princípio, porque, porque sim

   ( p 104)

Neste vivenciar, simultaneamente usual e novo, de um quotidiano que, sendo de tantos, é também de todos, o contra-regra endereça-nos o derradeiro poema deste itinerário poético: Prólogo - é o último título da representação. Que prossiga, então, a realidade, essa miríade de cenas que vamos atravessando... e que inexoravelmente nos atravessam também.

                                 Victor Oliveira Mateus
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