13/05/11

" (...) De tudo isto,/ durante dois, três anos, nada te disse./ Entretanto,"

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" O Hóspede"

As batatas cresciam no canto do cercado
naquele Setembro. Foram a comissão de boas vindas!
Os primeiros frutos da nossa própria terra. E o seu sabor
foi a primeira lenda. Pioneiro
na nossa própria vida, nessas manhãs -
comprei as enxadas, os ancinhos, os fatos de macaco, as botas.
E os livros. Os livros! Eu era estudante
ávido de saber tudo sobre horticultura,
a cornucópia inteira. Comecei a cavar.
Tinha de começar bem - cavei por duas vezes
todo o jardim. E o meu coração,
e tudo o que dentro dele se escondia, cavou comigo.
Convenci-me de que estava condenado - uma questão de tempo
até o coração saltar para fora do meu corpo,
ou simplesmente entrar em colapso. Depois de ter cavado durante algumas horas
subitamente alguma coisa deu de si, suava em abundância,
e tremia. O coração. Já estava acostumado.
Só podia ser o coração. As palpitações. As batidas.
À noite na almofada o ritmo incerto
do pulso no meu ouvido. Roleta russa:
cada batida do coração é como um novo lance de dados -
um estalido de roleta russa. Que estranho
ter estado deitado na minha cama
a observar o meu coração enquanto este me desfazia em pedaços
como se eu estivesse a tratar de uma simples dor de dentes.
E, no entanto, o meu coração era eu. Eu era o meu coração.
O meu coração, aquele que sempre me acompanhou cantando
no frenesi dos meus esforços. Como podia ele falhar-me?
Levei-o comigo para todo o lado, criança moribunda,
a pesar no meu peito. A súbita pontada
sob a omoplata esquerda.
Ou uma espada - imagem horrível de lâmina fina
cravada na vertical junto ao pescoço
até ao interior da clavícula. Ou algo a roer
por dentro, as costelas. Pior ainda
o desmaio imprevisto - engrenagem instantânea de deslize
de uma energia infinita para um nada fantasmal.
O ânimo em ponto morto, e o meu motor
acelerando inutilmente. Quantas vezes por dia?
A hipocondria caminhava, dando-me o braço
como uma enfermeira, com os seus dedos no meu pulso.
Bom, ia morrer.
Comecei a escrever um diário - umas observações
acerca da errata do meu coração.
Acordava com as mãos sem força. Ia para a cama
com os dedos a latejar tanto
que até sacudiam o livro que segurava e para o qual olhava.
Era nesse momento que eu sentia o soco duplo
entre as omoplatas
"suave mas atordoador como o coice de um camelo."
Na garganta, o súbito afluxo de sangue à solta,
como um pássaro de asa quebrada, que se escapou
momentaneamente
do gato. Esforços para fazer do meu corpo
uma conduta para a música de Beethoven,
e reconduzi-la através da aorta
de modo a que ele me percorresse, deixando-me limpo e sem mal-estar,
e me libertasse. Não consegui alcançar a música.
Tudo o que a música me disse
foi que eu era um rejeitado, já não pertencia
ao reino intacto ressoante e criativo
de onde a música brotava. Eu já podia ser deitado fora,
o meu ímpeto era apenas inércia
do que eu já tinha sido, enquanto me desintegrava.
Eu já era póstumo.
Tudo o que olhasse, fosse gato ou cão, via-me já morto, cambaleando
alguns passos, uma visão mecânica
ainda na minha retina.
O meu novo estudo
consistia em saber todos os modos como o coração pode matar o seu dono
e como o meu me tinha morto. De tudo isto,
durante dois, três anos nada te disse.
Entretanto,
quem usava o meu coração,
quem instalou a nossa colmeia e plantou,
com mãos inconscientes, só para se divertir,
nove filas de feijoeiros? Quem era esse trocista de um outro mundo
que tinha vindo para nos desalojar,
partilhando a minha pele, como partilhava a tua,
vendo-me a cavar, tão tranquilamente? E olhando
por cima do teu ombro, para os poemas que esmeravas,
como se olhasse para este ou aquele ou outro espelho
que tentasse ignorá-lo?

Ted Hughes in "Cartas de Aniversário", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2000, pp 265 - 269 (Tradução de Manuel Dias).
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