21/05/11

Acerca da Poesia de Vera Lúcia de Oliveira

      Vera Lúcia de Oliveira,
                                                                                     Victor Oliveira Mateus
                                                                         e Filipa Barata.
                                                                                                     Livraria "Pó dos Livros" (20/5/2011).

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O primeiro tópico que me ocorreu quando pensei falar da poesia de Vera Lúcia de Oliveira, prende-se com o modo límpido como esta autora se relaciona com a Linguagem, um modo desprovido de quaisquer prestidigitações estilísticas ou efeitos que poderiam correr o risco de empobrecer os seus poemas. Contudo, a autora conhece bem o terreno onde se move... Muitos de nós lemos, em tempos, uma célebre obra do Prof. Cerqueira Gonçalves, onde ele, traçando identificações entre os textos literário e filosófico, dizia que um dos motivos dessas aproximações se ficava a dever ao facto de ambos usarem a Linguagem natural. Não pretendendo ir por aí agora, gostaria apenas de dizer que a poesia, no seu discorrer, não é, nunca foi, nem conseguirá ser, até pelo facto de não poder recorrer à eficácia das Linguagens artificiais e dos  procedimentos lógicos, um discurso que apreenda rigorosamente as múltiplas vertentes da experiência humana, quer quanto à sua totalidade quer naquilo que elas são em si mesmas. Aliás, e relacionado com isto, poder-se-á até fazer, ao nível de uma sabedoria espontânea, a seguinte experiência: se eu disser branco - e partindo de hipótese que o receptor não tem qualquer lesão na área cerebral  que irá receber este estímulo auditivo nem na área secundária que o irá interpretar e coordenar -, no cérebro desse mesmo receptor formar-se-á a representação, não do azul nem do vermelho, mas do branco, o problema colocar-se-á ao nível da gradação das coincidências, do mesmo modo se entrarmos numa loja para comprar tinta branca imediatamente o empregado nos mostrará um catálogo com uma ou duas dezenas de brancos. Não me parece que fique mal a seguir a Cerqueira Gonçalves citar um ensaio de Antonio Brasileiro (A Estética da Sinceridade, p 14), onde o autor, com uma certa ironia nos diz: "Há pouco tempo um desses tipos que está sempre em dia com a última moda do intelecto tentou me convencer de que a diferença entre um bom poema e uma bula de remédio, por exemplo, era nenhuma. Produtos culturais ambos. E só". Ora este é, para mim, o primeiro segredo da arte de Vera Lúcia de Oliveira: movendo-se numa Linguagem despojada, num poema curto e num estilo que recusa todo o tipo de ornado, a poeta insiste em escrever poesia... e não bula de remédio; ela sabe que falar de algo, na prática, será sempre do campo do aproximativo e do incompleto::

"Teoria e prática"

não tinha termo não tinha jeito
de falar do que era uma perda
vivera e aprendera em todos
os livros que dentro da vida
há morte mas uma coisa é a teoria
outra a prática

  ( in A Poesia é um Estado de Transe, p 14)

Ou ainda:

"Por trás"

por trás do olho
sustar é perigoso

por trás do olho
respira sempre um outro
olho suspeitoso
palpar por dentro é vão
por onde um novo olho sobreposto
espreita o mesmo vão

 (in op. cit. p 24)

A autora, em certos poemas, fala-nos mesmo da contaminação (ou do desdobramento) que a Pragmática acaba introduzindo no seio de Linguagem:

" Tem palavras"

tem palavras que têm cicatrizes
a palavra apego, a palavra parto
a palavra tempo
dentro elas são de madeira
dentro elas se impregnam
quando a chuva bate na janela
penetra os poros

( in op. cit. p 13)

Finalmente, e relativamente a este tópico, posso ainda acrescentar que Vera Lúcia de Oliveira articulando a concisão do seu dizer poético com um subtil manejo do código linguístico e do cânone literário entra pelo universo da narratividade adentro, fugindo às armadilhas da microficção e tecendo antes poemas que adquirem uma certa função de alegoria dentro de um universo socio-cultural específico. Veja-se, por exemplo, o seguinte:

"A igreja"

a igreja brilhava em silêncio as pombas
do espírito santo voavam de vez em quando
as andorinhas tinham seus ninhos o padre
que mandara trocar o pavimento por mármore
da mais fina proveniência vivia em eterna luta
com os pássaros amaldiçoados que evacuavam
por toda a parte

( in No Coração da Boca, p 45)

Fugindo à tese que a poesia retrata fielmente o real ( numa época em que até a Fotografia, bem como o Cinema, afastaram já de si tal pretensão anacrónica de se deixarem restringir a uma única função da Arte) apercebemo-nos, neste último poema, de uma série de remissões e abrangentes sentidos (as pombas do espírito santo a fazerem-nos lembrar Alberto Caeiro; a luta do padre solitário contra os pássaros, inclusivé contra os de natureza divina, que enchiam de esterco a igreja, etc.) que nos dão a ver o modo arguto - e apetece-me mesmo dizer: sibilino! - com que a poeta tece os seus textos, assim como todo um universo poemático.
Neste segundo tópico ocorre-me dizer que não foi por acaso que acabei de utilizar o verbo tecer. A imagem da poeta, ao longo da leitura dos seus livros, foi-me surgindo sempre geminada com uma outra - a da tecedeira. Assim, foi com alegria que encontrei, dias depois do início das minhas leituras, através da mão do grande poeta e ensaísta que é Lêdo Ivo, a confirmação do que em mim temia ser mais do que pura conjectura: diz-nos, pois, o referido académico no seu Prefácio ao No coração da boca, que a autora "(...) recusa o fulgor e o esplendor, preferindo o caminho dos monólogos desolados que registram o desamparo e a colisão de seres miúdos, de pequenas vidas aflitas (...) O tecido poético de Vera Lúcia de Oliveira não é uma tapeçaria, antes um estopa (...) A poesia é construção, desconstrução, reconstrução. Vera Lúcia de Oliveira constrói, desconstrói e reconstrói: tece, destece e retece o tecido da vida." Suspeitando que o vocábulo estopa foi escolhido, aqui, como modo de clarificar um dado quotidiano socio-económico, continuarei a usar, fugindo agora delibaradamente ao rigor, o de tapeçaria. Pois nesta poesia, paralelamente à tentativa de apreensão de uma dada ordem, quer no corpo do mundo natural e do mundo humano, quer no corpo do próprio texto, há também um vincado intuito de com este nosso Todo entrar em comunicação directa - o transe deste seu último livro. Mas - e uma vez mais Vera Lúcia parece pretender baralhar incautos - através de um conceito que julgávamos que a tradição tinha clarificado, a poeta acaba falando-nos de outra coisa: o transe a que ela se refere não é o que podemos encontrar em vários autores, como por exemplo os místicos do século XVI espanhol, nestes estamos perante um movimento ascensional do sujeito visando uma transcendência que o supera ontologicamente e à qual se encontra subordinado, é esta a concepção de transe que encontramos em S. João da Cruz e Sta. Teresa de Ávila, por exemplo. Mas o transe de que nos fala Vera Lúcia tem o vector em sentido contrário, e, perdoem-me a heresia religioso-interpretativa: agora não é o indivíduo que se desprende do sensível para tentar chegar a Deus, é precisamente o contrário, ou seja, é o divino que, se quiser comunicar com alguém, ou entrar em contacto com quem escreve os seus versos e sente o real, terá de descer a um plano outro - veja-se por exemplo:

"Acordou de noite"

acordou de noite e disse que sufocava
que não conseguia respirar que uma angústia
dentro rasgava o pulmão as vértebras
não adiantava aquele remédio aquele leito
ela sabia
que na hora chegada
do dia que Deus tinha determinado
dentro da grande língua da terra
ela teria de entrar

  ( in A Poesia é um Estado de Transe, p 8 )

Atente-se ainda a um outro poema onde esse acto de ser tocado aparece agora com mais nitidez:

 "Há uns que são engenheiros"

há uns que são engenheiros
e calculam tempo e dimensão
do arcabouço
há uns que são carpinteiros
e medem ângulos exatos
interjeições da matéria
há uns que vagam no arcano
são medidos e tocados
até perceberem a proporção
correta de cada signo
que revela o mistério

 ( in op. cit. p 14)

É este, na minha leitura, o transe de que nos fala Vera Lúcia de Oliveira na sua elaborada e paciente tapeçaria poética: não uma subida para se juntar, num outro plano, à divindade, mas um vivenciar, no aqui, tudo aquilo que, nas coisas e nos seres, é extra-ordinário e divino, pois não nos enganemos, o mistério de que ela nos fala, e como escreve no poema com  o mesmo nome, não carrega vozes, ele está antes na aragem, na cozinha, nas panelas limpas/ nas tampas penduradas nas hastes/ na goteira incessante da pia. Dito de outro modo: o mistério está por todo o lado e resulta desse contacto directo com o divino destas mesmas coisas e destes mesmos seres, através dessa apreensão, que, como a poeta também nos diz, dá-nos a proporção correcta. Para finalizar, regresso ao ensaio de Antonio Brasileiro, volto de novo à questão da Linguagem e do fazer poético. Refere este autor, após algumas citações de Valéry, que a poesia é resistência, resistência e sobrevivência, e que " numa época de simplificação da linguagem, e de insensibilidade em relação às formas, há que pensar mesmo na poesia como uma coisa preservada", ou, posso eu acrescentar, como coisa a preservar. É isto exactamente o que faz Vera Lúcia de Oliveira: numa Linguagem, que, optando pela clareza, mas nada tendo de simplificação, como acabámos de ver, resgata o divino que existe em tudo aquilo que -para usar aqui um termo tão caro à mundividência llansolinana -; nos mais banais, e muitas vezes sofridos, gestos do quotidiano, a poeta recupera (e preserva) o que neles é essencial, e com eles consegue esse transe que é motor e matéria prima da sua poesia.

                                                                    Victor Oliveira Mateus
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