06/05/11


.
.
Um indivíduo pode sentir prazer em destruir um outro através de um processo de perseguição moral. Chega a suceder até que esse encarniçamento acaba desembocando numa verdadeira morte psíquica. Já todos testemunhámos ataques perversos a um nível ou outro, quer seja no interior de um casal, nas famílias, nas empresas, ou até na vida política e social. Contudo, a nossa sociedade permanece cega frente a essa forma de violência indirecta. Sob o pretexto da tolerância, tornamo-nos cúmplices!
Os danos provocados pela perversão moral têm dado lugar a excelentes temas para cinema (Les Diaboliques d' Henri-Georges Clouzot, 1954)...
No filme Tatie Danièle d' Étienne Chatiliez (1990) divertimo-nos com as torturas morais que uma mulher idosa inflinge àqueles que a rodeiam. Ela começa por martirizar a sua velha empregada ao ponto de a fazer morrer, "por acidente". O espectador diz para si próprio: " É bem feito, ela que não fosse tão submissa!". Em seguida ela derrama a sua maldade sobre a família do seu sobrinho, que a havia acolhido. O sobrinho e a mulher fazem o que podem para a satisfazer, mas quanto mais eles dão, mais ela se vinga.
Para tudo isso, ela utiliza um leque de técnicas de destabilização habituais nos perversos: os subentendidos, as alusões malévolas, a mentira, as humilhações. Surpreendemo-nos que as vítimas não tomem consciência desta manipulação hedionda. Elas esforçam-se para compreender mas sentem-se sempre responsáveis: " Que fizemos nós para que ela nos deteste deste modo?" Não é que Tatie Danièle estimule a sua cólera, ela é tão-só fria, má; não de uma forma ostensiva, o que poderia pôr de sobreaviso quem a rodeia: não, simplesmente com pequenos retoques desestabilizadores difíceis de captar. Tatie Danièle é demasiado forte e dá a volta à situação colocando-se no lugar de vítima e pondo os membros da sua família na posição de perseguidores que abandonaram uma velha de oitenta e dois anos, enclausurada num apartamento, tendo apenas por alimento comida de cão.
Neste exemplo cinematográfico cheio de humor, as vítimas não reagem pela passagem ao acto violento como seria normal na vida corrente; elas esperam que a sua gentileza acabe por encontrar eco e que a sua agressora se dulcifique. Mas é sempre o contrário que acontece, já que uma demasiada gentileza é tomada como uma provocação insuportável. Finalmente, a única pessoa que alcança mérito aos olhos de Tatie Danièle é uma recém-chegada que a consegue domar. Ela encontrou, por fim, alguém à sua altura, e uma relação quase amorosa pode começar.
Se esta mulher velha nos diverte e, ao mesmo tempo, nos comove, é porque insistimos em perceber que tanta maldade só pode ser proveniente de muito sofrimento. Ela inspira-nos piedade, tal como a inspira à sua família e é por aí que ela nos manipula: a nós e à família. Nós, os espectadores, não sentimos piedade alguma pelas pobres vítimas que nos parecem até bem estúpidas. Quanto mais Tatie Danièle é má, mais os familiares são gentis, logo, insuportáveis quer para Tatie, que para nós que vemos o filme..
Não nos restam dúvidas que estamos frente a ataques perversos! Estas agressões relevam de um processo inconsciente de destruição psicológica, formado por actuações hostis evidentes ou disfarçadas, de um ou de vários indivíduos, sobre um outro indivíduo perfeitamente identificado: o "sofre-dor" no sentido correcto do termo. Através de palavras aparentemente anódinas, de alusões, de sugestões ou de não-ditos, é efectivamente possível desestabilizar alguém, ou até mesmo destruí-lo, sem que quem está à volta tome posição. O ou os agressores conseguem assim engrandecerem-se rebaixando os outros, e, simultaneamente, evitar todo conflito interior ou um qualquer estado de alma, já que transferem para o outro a responsabilidade daquilo que não está a funcionar: " Não sou eu, é o outro que é o responsável do problema!". Não há neles lugar para a culpabilidade nem para o sofrimento. Trata-se então de perversidade, entendida esta como perversão moral!
Um processo perverso pode ser usado pontualmente por qualquer um de nós. Mas ele só se torna destrutivo através da sua frequência e da sua repetição ao longo do tempo. Todo o indivíduo "normalmente neurótico" apresenta, em certos momentos, comportamentos perversos, por exemplo num momento de cólera, mas ele é capaz também de passar a outros registos comportamentais (histérico, fóbico, obsessivo...), e os seus movimentos perversos são sempre seguidos de um auto-questionamento. Mas ... um indivíduo perverso é constantemente perverso; ele encontra-se fixado no outro através desse processo relacional e jamais se mete a si próprio em questão. (...) Estes indivíduos só conseguem existir destruindo alguém: é-lhes necessário amesquinhar os outros para obterem uma boa auto-estima, e, por consequência, adquirirem poder, já que são ávidos de aprovação e admiração. Eles não conseguem ter nem respeito nem compaixão pelos outros, já que estão centrados exclusivamente na relação. Respeitar o outro seria considerá-lo enquanto ser humano e reconhecer o sofrimento que lhe é infligido.
A perversão fascina, seduz e amedronta. Invejamos, por vezes, os indivíduos perversos, pois imaginamo-los dotados de uma força superior que lhes consente sempre o lugar de ganhadores.Efectivamente, eles sabem naturalmente manipular, o que aparece com um trunfo no mundo dos negócios e da política. Tememo-los igualmente pois sabemos instintivamente que mais vale estar com eles do que contra eles. É a lei do mais forte. O mais admirado é sempre aquele que melhor sabe jogar com o menor sofrimento. De qualquer modo, fazemos pouco caso das suas vítimas, que são tomadas como fracas ou desinteressantes, e, com o pretexto de respeitar a liberdade do outro, somos muitas vezes empurrados para a cegueira relativamente a situações graves(...). Ora, este tipo de agressão consiste justamente numa usurpação do território psíquico do outro. O contexto socio-cultural actual permite à perversão o desenvolver-se já que é tolerada. A nossa época recusa o estabelecimento de normas. Colocar um limite numa manipulação perversa seria entendido como um acto de censura. Tendo perdido os limites morais  ou religiosos que formavam uma espécie de código de civilidade e que nos poderiam dizer: "Isso não se faz!", nós apenas conseguimos reencontrar a nossa capacidade de nos indignar quando os factos vêm a público relatados e amplificados pelos media (...)
Os próprios psiquiatras hesitam em atribuir nome à perversão ou, quando o fazem, fazem-no para exprimir a sua impotência na intervenção, ou para mostrar a sua curiosidade ante as habilidades do manipulador. A própria definição de perversão moral é contestada por aqueles que preferem falar de psicopatologia, enorme sala de arrumações para onde eles atiram tudo o que não sabem tratar. A perversidade não é proveniente de uma qualquer perturbação psiquiátrica, mas sim duma fria racionalidade misturada com uma incapacidade de considerar os outros como seres humanos. Alguns desses perversos cometem actos delituosos pelos quais vão a julgamento, mas a maioria utiliza o seu charme e as suas faculdades de adaptação para abrir um qualquer caminho na sociedade, deixando para trás pessoas feridas e vidas devastadas. Psiquiatras, juízes, educadores, deixámo-nos todos armadilhar por estes perversos que se fazem passar por vítimas. Eles deram-nos a ver aquilo que esperavamos deles, para melhor nos seduzirem, e acabámos por lhes atribuir sentimentos nevróticos. Quando eles afinal até se mostraram tal como são, fixando claramente os seus objectivos de poder, nós hoje sentimo-nos enganados, ultrajados, por vezes mesmo humilhados. Tudo isto explica a prudência dos profissionais em desmascará-los. Os psiquiatras dizem entre si: "Cuidado, é um perverso!", querendo significar: "É perigoso" e também: "Não há nada a fazer." Mas assim há uma renúncia em ajudar as vítimas. É evidente que nomear a perversão é algo de grave (...). O termo perverso choca, incomoda, corresponde a um juízo de valor, e os psicanalistas recusam-se a emitir juízos de valor. Deve-se então aceitar tudo? Não nomear a perversão é um acto ainda mais grave, pois é deixar a vítima desarmada, agredida já e pronta a ser agredida de novo... ali está ela à mercê.
Na minha prática clínica enquanto psicoterapeuta, tive já de ouvir o sofrimento das vítimas bem como a sua impotência em defenderem-se. Neste livro demonstro que o primeiro acto desses predadores consiste em paralisar as sua vítimas para as impedir de se defenderem. Seguidamente, mesmo quando elas conseguem entender o que lhes está a acontecer, não conseguem adquirir quaisquer instrumentos para se ajudarem a si próprias. (...) Quando as vítimas finalmente se deixam ajudar, pode acontecer que elas não sejam entendidas. É mesmo corrente que os analistas aconselhem às vítimas de um assédio perverso que procurem nelas em que é que foram responsáveis pela agressão que sofreram, em que é que elas a desejaram, nem que tivesse sido inconscientemente.  Com efeito, a psicanálise considera apenas o intrapsíquico, ou seja, aquilo que se passa na cabeça do indivíduo, e não tem em linha de conta todo um contexto: ela ignora portanto o problema da vítima considerada como cúmplice massoquista. Mas quando os terapeutas decidem ajudar a vítima, pode acontecer que, pelas suas reticências em nomear um agressor e um agredido, acabem reforçando a culpabilidade da vítima e, consequentemente, agravando o seu processo de destruição. Penso que os métodos terapeuticos clássicos não são suficientes para ajudar este tipo de vítimas. Proponho portanto instrumentos mais adaptados, que tenham em linha de conta a especificidade da agressão perversa.
Não se trata aqui de fazer o processo dos perversos - aliás, eles defendem-se muito bem sozinhos -, mas de considerar a sua nocividade, a sua perigosidade para com o outro, a fim de permitir às vítimas, ou futuras vítimas, defenderem-se. Mesmo que se considere, e justamente, a perversão como um mecanismo defensivo (defesa contra a psicose ou contra a depressão ), isso não exclui os perversos em si mesmos. Ocorrem manipulações anódinas que deixam apenas um traço de amargura ou de vergonha por se ter sido intrujado, mas existem também manipulações muito mais graves que esmagam a própria identidade da vítima e que são mesmo questões de vida e de morte. É importante saber que estes perversos são perigosos: diretamente para as suas vítimas, mas também indiretamente para todos os que os cercam levando-os a perder as suas referências e a acreditar que é possível aceder a um modo de pensamento mais livre mutilando os outros.
(...) Uma pessoa que tenha sofrido uma agressão psíquica como a perseguição moral de que aqui falamos é realmente uma vítima, já que o seu psiquismo sofreu alterações mais ou menos duráveis. Mesmo se o modo de reagir à agressão moral puder contribuir para estabelecer uma relação com o agressor que, por sua vez, se alimenta dessa mesma relação,e der a impressão de ser "uma relação simétrica", mesmo assim, é preciso não esquecer que aquela pessoa sofre de uma situação cuja responsabilidade não lhe pode ser imputada. (...) Se estas vítimas se lamentam por vezes do seu parceiro ou de quem as rodeia, só raramente têm consciência da existência desta violência subterrânea, medonha e da qual não ousam queixar-se. A confusão psíquica que previamente se instalou pode fazer esquecer, mesmo ao psicoterapeuta, que se está ante uma situação de violência objectiva. O ponto em comum destas situações é o indizível: a vítima, mesmo reconhecendo o seu sofrimento, nem sequer ousa imaginar que está inserida numa situação de violência e de agressão. Uma dúvida persiste, por vezes: " Mas não serei eu que estou a inventar tudo isto, como certas pessoas me dizem?". Quando a vítima ousa lamentar-se do que lhe está a contecer, ela fica sempre com o sentimento de não ter feito uma descrição correcta, de não ter sido entendida.
Escolhi deliberadamente os termos agressor e agredido, pois estamos frente a uma violência confessa, mesmo quando se oculta, uma violência que tende a agarrar-se à identidade do outro e a retirar-lhe toda a sua individualidade. É um processo real de destruição moral, que pode levar à doença mental ou ao suicídio. Mantenho igualmente a denominação de "perverso", pois esta reenvia claramente para a noção de abuso, como é o caso de todos os perversos. Tudo começa por um abuso de poder, segue-se um abuso narcísico no sentido em que um perde toda a auto-estima e pode desembocar num abuso sexual.

  Marie-France Hirigoyen in "Le harcèlement moral - La violence perverse au quotidien ",
Éditions La Découverte, Paris, 1998, pp 7 - 16 (Tradução de Victor Oliveira Mateus)
.