21/08/11

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A casa dos avós, com dois pisos superiores e varandas de ferro fundido rasgadas sobre a rua, tinha um grande quintal nas traseiras, um quintal onde cresciam flores sob as copas das árvores e onde Mike encontrava uma liberdade de movimentos e um manancial de descobertas que nada, então, poderia substituir. Quando deixou de trepar às árvores e investigar caves e arrecadações, encontrou outros prazeres na casa de São Francisco: primeiro, nos livros que enchiam as estantes da ampla sala de estar; e mais tarde, já adolescente, depois da morte do avô, em longos diálogos com a avó Rafaela. Os pais diziam-lhe: "Quando saíres do liceu, vai a São Francisco fazer um pouco de companhia à avó." E ele ia, obediente e cumpridor, mas também seguro de que, aos doze ou treze anos, tinha efectiva capacidade para distrair a avó Rafaela do seu desgosto e confortá-la com a sua presença.
Mais tarde, quando já estudava em Londres e tivera a primeira experiência directa da solidão, descobrindo o preço a pagar pela euforia da liberdade, da posse do tempo e da autonomia nas escolhas, Mike começou a entender melhor a extensão do sofrimento da avó: para ela, não tinha havido contrapartida de nenhuma espécie em troca da solidão, ela não precisava de de mais liberdade nem sonhava com aventuras, precisava apenas da presença do homem com quem partilhara mais de quarenta anos de vida. Pela primeira vez, Mike avaliou a dor de quem fica, como a avó ficara, condenada a enfrentar a sobrevivência e a querer fazê-lo com dignidade e respeito por si própria - e compreendeu que essa dor só poderia ser comparável à de quem parte, à de quem reconhece a aproximação da morte e sofre pela irremediável solidão em que deixará a companheira de toda uma vida. Encontrou algum alívio na certeza de que não compete a nenhum ser humano proceder à terrível decisão de escolher quem parte e quem fica, nem tão-pouco à penosa descoberta de qual dos dois sofrerá a dor maior que cada um gostaria de poupar ao outro.
(...) Na previsão do desagrado da mãe perante o seu envolvimento com Katherine, Mike precisa de falar com a avó que, neste caso específico, dispõe da vantagem de não ser inglesa e de conseguir manter um distanciamento muito maior perante o novo conflito a acontecer. Na sua própria casa, só se fala de guerra, as cartas que a mãe recebe de Inglaterra fazem eco de um clima de tensões e incertezas, mas também da convicção generalizada de que urge travar os planos expansionistas de Hitler. Num contexto tão ameaçador, poderá a mãe aceitar o seu envolvimento com uma alemã?(...) E a avó? Poderá a avó entender uma situação sentimental tão diferente daquela que ela própria viveu, numa sociedade em tão rápida e radical mudança e, sobretudo, no provável limiar de uma nova guerra? Valerá a pena falar-lhe de Katherine? Mas se não falar com a avó, com quem será então?
(...) Rafaela tem umas mãos fortes. São longas e esguias, mas fortes. "Umas mãos bonitas", dizia-lhe o marido, " e umas mãos capazes. As tuas mãos são o teu retrato, o retrato de uma mulher que não se intimida com nada, nem se deixa intimidar por ninguém." Foi com essas mãos fortes e a sua alma lutadora que Rafaela reorganizou a sua vida quando João Miguel morreu. Não queria viver sozinha, mas também não queria sobverter a sua casa e a sua vida (...). Olhou à sua volta, à procura de gente como ela, não necessariamente velhas amigas mas mulheres sozinhas como ela própria, compatíveis nos hábitos (...) mulheres que gostassem de ler, que soubessem conversar mas que não se sentissem incomodadas pelo silêncio, que cultivassem o companheirismo mas que não hesitassem em sair sozinhas quando lhes apetecesse - não estaria a pedir demasiado à vida?
(...) Começaram a visitar-se, a sair juntas, a trocar livros e a discuti-los, num entendimento sereno que foram cultivando com prudência, como se todas partilhassem a noção de que já não tinham idade para ser ingénuas, ou que mais valia prevenir do que remediar, ou qualquer outra pérola equivalente da sabedoria tradicional...
(...) "Miguel... Miguel!"
"Avó? Desculpe, estava distraído..."
"Andas muito distraído...", comenta Rafaela, sarcástica.
"Quem é a beldadezinha que tanto te distrai?"
" Oh, avó, acabo de contar-lhe que ando cheio de trabalho, deito-me muito tarde, oh, avó, por favor..."
Célia e Bela riem e apoiam-no, não por acreditarem nos seus protestos, mas exactamente por não acreditarem - e gostarem de ser cúmplices, ainda que de longe, ainda que de leve, numa eventual história de amor.
Mike sorri-lhes, grato pelo apoio. E Rafaela, com falsa severidade, declara-se traída por todos.

 Helena Marques in " O bazar alemão", Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2010, pp 77 - 86.
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