26/09/08


Nunca te pedi que ficasses. Nem que uma qualquer
dádiva fingisses na irremediável mobilidade dos afectos.
Nunca te pedi um qualquer excesso. Não daqueles
que na sua vagueação assumida se tornaram essência
do que essência já não tem, mas dos outros, dos que

me enchem por dentro, quando te encostas à janela
para fumar o último cigarro, quando sorrindo me apontas
o cabriolar dos gatos nos telhados em frente, quando
me olhas sem me conseguir ver: ávido que sou de
permanência no descuidado tumulto com que te fartas.

De mim a mim há um abismo onde nem sempre cabes.
Talvez em certas noites, naquelas em que a solidão aperta
e a dúvida me corrói, até te consiga sentir perto, mas sentir
perto não é ficar. Ficar é coisa que nem à palavra vem de
forma clara e nítida. É onda a trespassar-nos o corpo. Brilho

persistente na lenta preparação do último encontro. Nunca
te pedi que ficasses. Mas ainda acalentei a esperança
que por ti o decidisses. E assim, chegado o instante que
derradeiro sabemos ser, e sem que alguém o visse, e sem
que alguém sequer o suspeitasse, a alma me arrancarias
para que eu forçosamente voltasse em novo re-canto de nós.


Victor Oliveira Mateus In "A Irresistível Voz de Ionatos", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 32 (Posfácio de Cláudio Neves e texto da contracapa de Olga Savary).