16/06/09

"Da Terra à Luz"



"Os Escribas"

Nunca senti por eles grande entusiasmo.
Se eram excelentes eram também petulantes
e de um trato tão espinhoso como o azevinho
de que extraíam a tinta.
E se nunca fui um deles também é certo
que nunca me puderam negar o meu lugar.

Na quietude do scriptorium
crescia neles a todo o tempo uma pérola negra
como o velho coágulo seco por dentro das penas.
À margem de textos laudatórios
arranhavam, esgadanhavam.
Rosnavam se o dia estava escuro
ou se giz a mais amolecera o vellum
ou giz a menos o deixara oleoso.

Sob os dorsos da caligrafia
arrebanhavam rancores míopes.
Sementes de ressentimento ponteavam-lhes
as espirais de fetos das maiúsculas.

De vez em quando eu tinha um sobressalto
a milhas de distância, e via na minha ausência
o cursivo inclinado de cada dorso, e sentia-os
a aperfeiçoarem-se contra mim, página a página.

Que se recordem deste contributo não desprezível
para a sua arte de invejas.


Seamus Heaney In "Da Terra à Luz - poemas 1966-1987 ",
Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1997, p. 333, (trad. Rui Carvalho Homem).
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