26/03/10

"Sou um homem fiel a lugares,/ como sou fiel (demais) a mim mesmo, "

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Eis Leicester Square, não preciso de sonhar mais.

Sou um homem fiel a lugares,
como sou fiel (demais) a mim mesmo,
como sou fiel (demais) a sentimentos,
como sou fiel (demais) a ideias e princípios,
mas os bares, como a Roundhouse, nasceram
exactamente para nos esquecermos de tudo isso
e principalmente de nós mesmos,

do lixo que trazemos
e das ideais e princípios e sentimentos que nos amarram.

Sinto-me bem e leve no meio de tanta gente,
de tantas raparigas,

aqui a vida conflui
de agora e do passado, é só uma e sem hiatos,
daí que veja Ana Bolena misturada connosco,
a beber e a vozear como os outros,

só um discurso de Churchill na rádio nos silenciaria,
hipótese que se admite possa acontecer,
na Roundhouse nada há que não suceda.

Mais do que um confessou ter visto Eliot
no passeio oposto, enquanto uma celta afirmou
ter surpreendido Robin Wood a assaltar o
Barclay's Bank com a namorada. Jurou-mo
entre gargalhadas cristalinas de desejo.

Ó tentação,

o pint de cerveja era uma ponte ideal para ambos,

ou o restaurante tailandês onde irei jantar
por recomendação de amigos, o Srim Siam,

os amigos são óptimos para dar estas indicações.

Telefonei da manhã do hotel, que continuava
o naufrágio lamentável, telefonei a reservar mesa,

e a celta tem uns dentes tão brancos que me dói
olhá-los na boca húmida, aberta em gargalhadas,

ó fauno da ibéria romana,
ó bode selvagem do Gerês,
que misturada e primitiva humanidade é a nossa?

Sob o meu fato e o vestido negro dela
ocultam-se dois ímans duros que esperam.
(...)
Não, não quero complicações sentimentais,
não é isso que Londres me exige, nem a gente que passa.

Os estados de graça requerem abstinência, senão fenecem.

Não se pode tocar no sonho, as visões oníricas do fascínio
não permitem mais do que uma participação entusiasta,
o seu entendimento, a solidariedade que embebeda.

E esse é outro amor,
tudo se sabe que irá ser possuído, e sabê-lo
é já um orgasmo que eleva.

Não quero pensar no avião que partirá.

Nuno Dempster in "Londres", &etc, Lisboa, 2010, pp 42 - 44.

(Nota - o presente texto é um poema com algumas dezenas de páginas,
portanto outras opções poderiam ter sido feitas. Assim, poder-se-á ver
igualmente algumas das principais linhas de força desta poesia (pp.
13-16), a questão da beleza numa vida que é essencialmente contradição
(pp 26 - 27), a noção de efemeridade ligada ao poder e ao amor (pp. 36-37),
a irónica relação do teatro com o metropolitano (pp 39 - 41), etc. Optei por
este excerto, mas outras escolhas eram igualmente legítimas e justificáveis...)
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