01/08/12

" Não me angustia a morte/ mas os rios onde não deitei os meus olhos "



Meu caro amigo
o fim chegou como uma flecha
e não encontro a chave
para decifrar o último enigma.

Pesam-me as pálpebras e as mãos.
Houve dias em que dancei
troquei beijos
sonhei.
Agora, perto do fim
resta-me a soma das lembranças.
Passada já a última dor
acerto os passos nos últimos versos.

Não me angustia a morte
mas os rios onde não deitei os meus olhos
as pétalas que não toquei
as melodias que não ouvi
as estrelas que não espreitei.

Não vale a pena esquivar o tempo
ir buscar a cana de pesca e abalar para o rio
contar histórias aos peixes que não mordem o isco.

Resta-me ainda nos olhos
um grande reservatório de sonhos
que se embaciam.
Mas nem um vestido negro tenho
para o meu próprio luto.
Meu caro amigo
promete cobrir-me de rosas vermelhas
amanhã.
Sei que vai chover.

Não chores por mim.
Cobre-me de rosas cor de sangue
e segue para casa.
Abre a caixa de selos que te enviei pelo correio
e procura neles
as minhas impressões digitais.

No silêncio da casa
tenta tu compreender a vida
enigma de todos os meus dias
esse traço estranho que me acompanhou sempre
essa etérea luz
nem sempre chama
nem sempre ténue.

O olhar escurece-me
e nestas palavras inúteis
medito sobre o fim.

Aconchego-me na despedida
sem saber o que fui
porque nunca me forneceram
o meu livro de instruções.

Ramos, Inês. Meditações sobre o fim - os últimos poemas. S/c.: Hariemuj Editora, 2012, pp 73 - 74 ( Antologia organizada por Maria Quintans).
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