16/04/08

" Caminho" (2003), Foto de Nuno Fernandes
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Para uma leitura de A outra margem do Tempo (de
Alexandre Bonafim) - breves considerações.
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Longe de vislumbrarmos uma ruptura entre os dois livros já
publicados por Alexandre Bonafim, julgamos antes poder descortinar
um percurso dotado de coerência, onde a poesia é esse dizer "entre
o efémero e a eternidade" (p.25). Assim, se em Biografia do deserto
o poeta opta por enfatizar a transitoriedade da errância humana
com todos os seus acidentes, em A outra margem do tempo o Eterno
e o Imortal tomam a dianteira sobrepondo-se àquilo que na primeira
obra era imanente e circunstancial. As descontinuidades vêmo-las,
não no continuum de um itinerário, como já dissemos, mas no exímio
domínio da linguagem e na escorreita forma como toda uma complexa
imagética é manipulada, para a consecução de uma voz una e inconfun-
dível. Consideramos, pois, o novo livro de Alexandre Bonafim um
texto de maturidade, em que a minúcia no trabalhar da palavra poética
ombreia com a precisão com que se expõem inquietações, observações
e anseios.
Recusamos a ideia de que uma obra de arte só é profunda se versar
temas que se circunscrevem às concepções cépticas e/ou niilistas da
existência, ou aquelas outras, que, num malabarismo antinómico, se
limitam a colocar todo o seu discorrer num além apenas entrevisto e
completamente desligado do real objectivo; por esta razão diremos
que pode haver tanta profundidade num poema em torno de sofrimento
de um animal (cf. Alexandre Bonafim, Biografia do Deserto, p.72)
como na descrição de um êxtase pessoal. A profundidade não nos advém
do objecto abordado, mas do modo como sobre ele recolocamos o
olhar (cf. Henrique Manuel Bento Fialho, O meu cinzeiro azul,pp30-38).
Fazer poesia não se limita a um mero alinhar de símbolos, é igualmente
instituir uma prática, que, partindo do quotidiano, visa dar alma ao
mundo e nele desdobrar o ser nas suas múltiplas significações, por
conseguinte terá de ser por aí que o homem simples se encaminhará,
(cf. Henrique Manuel Bento Fialho, op.cit.) e, em persistência e abnegação,
procurará essa outra margem do tempo, território onde o mais
absoluto silêncio coincide com a suprema auscultação de tudo o que
das coisas ressuma. Por tudo isto, diremos que a profunda acuidade
da poesia de Alexandre Bonafim vem-lhe muito mais da forma como
coloca o seu olhar sobre os temas do que da especificidade destes.
Em segundo lugar, o cismar do poeta em torno do Eterno não é uma
lucubração gratuita desligada do nosso tempo concreto; é para nós
claro que estamos ante um itinerário que visa o transcendente, mas
que não deriva de qualquer prestidigitação grosseira; é um itinerário
sim, mas que parte desta margem que habitamos e que temos como nossa,
margem simultaneamente marcada e ferida pela temporalidade, logo,
pelo efémero também.
A viagem do efémero para o Eterno e Imortal é, quanto a nós, a
primeira grande ideia deste livro:"Em minha voz. um veleiro traçou
um rito de espantos,/um itinerário de espumas em despedida"(p30);
"Caminho por uma praia sem margens,/inteiro azul a queimar os
barcos"(p42);"Em cada segundo, veleiros inscrevem,/no meu rosto,
um roteiro de límpidas espumas."(p60). Mas o poeta não se limita
a viajar, ele viaja-se também e em simultâneo, aliás, este último
propósito atinge, por vezes, um tom confessional:"(...)Na imensa
correnteza dos acontecimentos perdidos, viajo-me/em busca do meu
rosto inaugural,"(p34). São inúmeras as referências à efemeridade
a partir da qual se inicia a caminhada (ou ascensão?) do poeta, a
essa correnteza de acontecimentos eivada de "gritos de algazarra"(p25)
(...) esta viagem poética não visa apenas esse solo matricial firmado
pela eternidade, mas incorpora igualmente a demanda do rosto
originário do próprio poeta, daquilo que ele essencialmente é em
todo o cosmos que o rodeia:"(...) Repentinamente, as árvores do verão,/
verde além do tempo, além do espaço, germinam/ o que eu fui,
o que ficou apagado pela escritura/dos desertos, pela constante
passagem das chuvas"(p55). Eis um dos grandes paradoxos desta
aventura poética!: o efémero é o espaço onde progressivamente se
institui todo um percurso gradativo, mas ele é também o lugar
onde repentinamente germinam factos e coisas(...)De tudo isto
um terceiro item aparece-nos nesta obra de Alexandre Bonafim:
o poeta procura, e procura-se. mas apenas entregue às suas
próprias forças:"(...)Sem itinerários,/sem bússola que me norteasse
/pelo deserto, caminhei sob a solidão/como quem espera a visita/
de uma manhã de setembro."(p71);"(...)Nessa viagem/sem bússola,
fluxo de veleiros sem rumo,/ vou-me embora de toda a ausência
desaguo/o meu rosto na origem das palavras:milagre/ a refulgir o
mar e o sonho"(p75); "A ampulheta partida:/ os segundos derramaram-se/
para além de toda a hora"(p31).
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Urge ainda ressalvar a tão conseguida poeticidade deste novo livro
de Alexandre Bonafim: aqui a envolvente musicalidade dos versos
articula-se, quer num jogo de bruxuleio apenas insinuando, quer numa
veemência flamejante enformando a complexidade de um dado
discurso, articula-se - dizíamos nós -, com uma irrepreensibilidade
de estilo e com a nitidez radical de sentido: "Esculpes o infinito no
itinerário dos pássaros/a rasgarem o silêncio. Tão intensamente
abraças/ a febre, que a vida multiplica, em ti, os pães e as
palavras(p.73);"(...)Um rio solitário navegou-me/ em seus braços,
levou-me para a outra face/da morte. Nessa viagem despida de
leste/e sul, bebo o silêncio de tudo o que é eterno (p75).
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Victor Oliveira Mateus, In A outra margem do tempo de
Alexandre Bonafim, Ribeirão Editora, São Paulo-Brasil, 2008.