13/05/09

A poesia e a questão do fingimento.

" Paul Veyne, o grande historiador da cultura, assevera que, desde Petrarca (1304-1374), todos nós, leitores de poesia, nos habituamos a divisar, no recesso de toda obra poética, a voz particular de um ego que expõe publicamente suas dores e alegrias pessoais, historicamente datadas e situadas. A partir daí, ao contrário do que ocorria na Antiguidade, quando era aceita como uma forma de encenação, a poesia lírica passa a ser encarada como confidência íntima. Camões, nosso petrarquista exemplar, colabora para endossar e reforçar o hábito, alertando-nos: "Sabei, pois, que segundo o amor tiverdes/ Tereis o entendimento dos meus versos". Desde então, o primado da voz particular e da subjectividade, que irmana sujeito-poeta e sujeito-leitor, tem sido encarado como verdade inquestionável, uma segunda natureza, indissociável do lirismo confessional. Poesia passa por ser isso mesmo, entrelaçamento de subjectividades, sensíveis e permeáveis, propiciado pela franqueza com que o poeta nos expõe sua subjectividade modelar. Tal franqueza faculta a todos, dos primeiros leitores de Petrarca aos leitores dos poetas nossos contemporâneos, o acesso a esse entrelaçamento, que nos mantém na firme convicção de que estamos fortemente ancorados na realidade (a mesma dos poetas, pois não?), quando talvez estejamos apenas a alimentar a fantasia de que assim seja - ludibriados ou pelo engenho e a arte dos poetas, ou pela força da inércia.
Hoje sabemos (a malícia pós-moderna nos põe a salvo dessa ilusão, embora não nos torne imunes a outras) que nem em Petrarca, nem em Camões, nem em nenhum dos nossos grandes poetas, antigos e modernos, o ego que nos fala em seus versos "retrata" a subjectividade ou a vida privada do cidadão responsável por esses mesmo versos. Hoje preferimos falar em "eu lírico", para contrapô-lo à conjectura de um "eu empírico", e já não exigimos do poeta a franqueza ou a "sinceridade" que dele se esperava, desde os tempos de Petrarca.
(...) A linguagem humana não tem como "dizer" o mundo. Schopenhauer não hesita: "O mundo é a minha representação do mundo", e certa pós-modernidade nos convencerá de que tudo são relatos, tudo são discursos - ficções que variam ao infinito, supostamente no encalço de uma subjacente verdade singular (a verdade do eu ou a verdade do mundo), à qual não temos acessos. Ao proferir "eu", Petrarca, Camões, Hoelderlin - qualquer poeta - já não tem mais como "dizer", com "sinceridade" o que lhe vai pela vida íntima. O que daí provém será sempre simulação, representação figurada, encenação - tal como o fora, entre os antigos, e, ao que parece, nunca deixou de ser. Rimbaud admite: "Je est un autre", ciente de que isso vale para toodos os poetas - os que sabem, como Fernando Pessoa, e os que não sabem que o poeta "finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente".
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Carlos Felipe Moisés
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(Nota - Todas as discussões, francas e despojadas, são enriquecedoras. Não teria chegado a uma série de textos sem uma delas... )
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