24/11/10

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"A vida é um milagre"

( após rever Kusturica)


Todas as viagens são permutáveis. Assim as falsas
alegrias, as clausuras, a ternura até - tudo matéria
de troca, de empréstimo, de aluguer a módico preço
desde que nos faça esquecer a solidão, praticar a fuga
para a frente, justificar a verborreia em que se não crê
mas exercita: estridente ruído que se propaga, embala
e atordoa. Enfim, tudo tão igual entre si e eu tão igual
aos outros. Tudo tão monotonamente igual! Basta
o mesmo solo, os dissolutos meios, a firme fragilidade
que toda a segurança traz - o mesmo para a noite!

Todas as noites são igualmente permutáveis. E cada um
perdido a seu modo, apesar do ódio que despertamos
a quem não vê - nocturnas malhas com que sempre teço
as minhas madrugadas, as mesmas com que insisto,
com que aceno e depois comigo adormecem como luz
que não perdoa. Tudo isto penso agora (ou sinto?)
a léguas de casa. Mas... gosto da minha noite, confesso.
Lá fora uma chuva miudinha bate-me à janela. Chuva
fora de tempo - tal qual eu, felizmente! Minha irmã chuva,
diria o de Assis, que sempre espreita através dos meus versos.

Lá fora, o latir de um cão ao longe. O roçagar dos pneus
no pavimento molhado. O barulho de uma persiana que se
soltou. O ramalhar dos jacarandás que, em sintonia, acompanham
as gotas a baterem-me nos vidros, nos pensamentos - os meus,
estes que se emaranham corpo adentro com um não sei quê
de erótico, de inexplicavelmente torturante e apaziguador
ao mesmo tempo. E há também o teu rosto, quase sem contornos:
sombra a dissolver-se na sombra. Há os passos arrastados
de vizinha de cima. Os acordes de Fantástica de Berlioz
que acendi na penumbra. Na realidade todas as noites
são permutáveis, mas eu... só a custo deixaria a minha.

Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, pp 38 - 39.
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