22/12/10

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                    "Por linhas tortas"



Nunca conheci quem tivesse escrito uma merda.
Todos os meus conhecidos têm sido brilhantes em tudo o que escrevem.
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E eu, tantas vezes cego, tantas vezes burro, tantas vezes tímido,
eu tantas vezes irrespondivelmente plagiário,
indesculpavelmente preguiçoso,
eu que tantas vezes não tenho tido paciência pra consultar o dicionário,
eu que tantas vezes tenho sido ridículo, vaidoso,
que tenho cortejado os elogios fúteis e desprezado as críticas honestas,
que tenho escrito poemas grotescos, tacanhos, redundantes e pretensiosos,
que tenho deletado mais de metade do que escrevo,
que quando não deleto, tenho me arrependido de cada poema publicado;
eu, que tenho submetido meus poemas ao julgamento de gente que eu desprezo
e tenho me sentido humilhado pelo desprezo dessa mesma gente;
eu, que não como ninguém com meus versos românticos;
eu, que não choco ninguém com meus versos satânicos;
eu, que tenho passado noites em claro pensando num advérbio ou num adjectivo;
eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
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Toda a gente que eu conheço e que troca e-mails comigo
nunca errou uma concordância, nunca se enredou numa falácia,
nunca foi senão genial - todos eles gênios - na vida e na literatura...
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Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
que confessasse, não um bloqueio criativo, mas uma ingenuidade;
que contasse, não que seu livro não vendeu, mas que não valia o preço de capa!
Não, são todos mestres de Homero e instrutores de Shakespeare,
se os ouço e se falam comigo.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez escreveu uma frase feita?
Ó gênios, meus irmãos,
caralho, estou de saco cheio de Rimbauds e Mallarmés!
Onde é que há gente no mundo?
Então só eu que sou burro e pouco original nesta terra?
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Poderão ter sido achincalhados pela crítica,
podem ter sido ignorados por Deus e o mundo,
mas terem escrito uma frase ridícula, nunca!
E eu, que tenho escrito frases ridículas cotidianamente,
cercado por tantos gênios, como posso querer ser lido com atenção?
Eu, que tenho sido estúpido, literária e literalmente estúpido,
estúpido no sentido simplório e bruto da estupidez.
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Marco Catalão in "O Cânone Acidental", É Realizações Editora, São Paulo, 2009, pp 104 - 106.
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