02/03/12

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Durante muito tempo, opus-me à eutanásia, por imaginar que existia a possibilidade de os filhos matarem os pais, não só por deles esperarem uma herança, mas por considerarem que o seu tratamento lhes exigia um trabalho demasiado pesado. Mas quando comecei a pensar na minha morte, a atitude mudou. Se alguma tragédia me acontecer - se ficar paralisada ou demente -, suponho que existem pessoas que me amam o suficiente para fazerem o que sabem constituir o meu desejo. Mas quem me garante que isto será verdade ad seculum saeculorum? E por que motivo terão de ser consideradas criminosas? E quem me garante que haverá um médico que ajude a concretizar o meu desejo? Comecei a vacilar nas minhas certezas.
Embora consciente de que o documento não tinha base legal, a 23 de Março de 2005, redigi um "testamento vital". Eis, ipsis verbis, o que escrevi: "Se ficar paralisada totalmente, se ocorrer uma situação em que os médicos só me possam manter viva através de alimentação por via gastro-nasal ou do estômago, se sofrer de uma doença incurável e estiver em sofrimento, se a minha vida se tornar vegetativa, isto é, sem possibilidade de voltar a recuperar o meu estatuto de ser humano, racional e detentor de memória, não quero que a prolonguem." Algumas decisões que se tinham revelado necessárias aquando da doença da minha mãe, e o caso, muito notificado na época, de Terri Schiavo, uma americana cujo marido, embora ela nada tivesse deixado escrito, optara por a deixar morrer, levaram-me a não adiar o projecto.
(...) Mais cedo ou mais tarde, o Estado vai ter de tomar uma posição, esperando que não seja assaltado de pânico diante do erroneamente designado lobby "pró-vida". Em Espanha, que tem uma História não muito diferente da nossa, o testamento vital, a sedação terminal e a recusa de tratamento são legais. A Lei da Autonomia do Paciente, de 2002, que, note-se, recebeu a aprovação da direita, permite a qualquer doente tomar decisões que, até então, eram deixadas nas mãos dos médicos(...)
 A eutanásia ficou desacreditada, na década de 1930, pelo uso que do termo fizeram os darwinistas sociais e pelo que, depois, se passou sob o nazismo. Convencidos de que as sociedades avançadas e os indivíduos com mais êxito tinham aptidões genéticas superiores, enquanto os improdutivos haviam herdado traços de carácter que os conduziriam à degenerescência, alguns intelectuais do período mutilaram o pensamento de Darwin, defendendo a esterilização ou a morte dos "desviantes". Pior havia de chegar, com a liquidação, pelos nazis, não só de milhões de judeus, mas de idosos e de  deficientes (calcula-se que assim morreram cerca de 200 mil).

  Mónica, Maria Filomena. A Morte. Lisboa: Fundação Francisco Manuel do Santos. 2011, pp 44 - 46.
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