29/03/12


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                  " A  CONFIRMAÇÃO "

  Ao ver-lhe a aliança, pela primeira vez, Teresa sentiu um misto de estupefacção e asco. Aquele pedaço de prata reluzente, assim exibido no anelar esquerdo, trouxe-lhe à memória as reuniões columbófilas da sua infância: as aves fechadas em minúsculas gaiolas, o arrulhar monotonamente idêntico, a domesticação a desenhar-se numa liberdade para divertimento alheio. Como poderia, pois, alguém alegrar-se com uma entrega cheirando à oca rotina das aparências?, pensou Teresa, à entrada do café, enquanto se amparava à arca dos gelados. O que a chocava não era - como é óbvio - o símbolo do pacto, mas o ar de conquista, de alvo conseguido com que Diogo exibia o troféu.
  ( Sabes?, diria ela, nessa tarde, a Gonçalo, seu amigo de infância que sempre a entendia ou a isso se esforçava: era como se se estivesse frente à vida como uma corrida de obstáculos e aquele idiota andasse a apregoar que tinha superado mais um... )
  Cumprimentaram-se. Sorriram. Tomaram o pequeno-almoço ao balcão como era hábito: ele sempre de sorriso estudadamente inocente em riste, de olhar perverso que prometia o que de antemão sabia que jamais iria dar e com as mesmas palavras de uma venenosa fragilidade a armadilharem-lhe os instantes. Teresa não podia deixar de fixar a aliança, e ele, provocatoriamente, fingiu sacudir com essa mesma mão umas migalhas que nem sequer tinham caído no casaco. Despediram-se como de costume. Nessa tarde, a pretexto de uma questão qualquer, Diogo arranjara um modo de lhe ligar para o telemóvel. Enviara-lhe igualmente dois incipientes emails com notícias sobre uma cantora de que ambos gostavam.
  No dia seguinte não se encontraram, de manhã, no café. Estudadamente, ou não, ele não aparecera à hora do costume para o pequeno-almoço. Mas, em contrapartida, Diogo sentar-se-ia à sua mesa, na esplanada, naquele mesmo dia, ao fim da tarde. Sorridente. Acabado de sair da capa de uma revista de moda masculina. O anelar esquerdo a tamborilar, a despropósito, no tampo da mesa. Ela não conseguia disfarçar o seu nervosismo e - porque não confessá-lo? - o seu desejo, mas ele, com ar de quem acena mas não dá, convidou-a para nessa noite irem ao cinema, para, minutos depois, exibir a pose de quem se recordava de algo e logo dizer que não, afinal não podiam ir, ele tinha-se esquecido de uma coisa: tinha um encontro com uma amiga e já se estava a esquecer. Teresa não perguntou nada, apenas se ia acusando de não conseguir sair daquele redil a que se prendia cada vez mais.
  ( Não é possível que tudo aquilo seja representação!, confidenciou ela a Gonçalo, por telefone nessa mesma noite. Olha lá, perguntou-lhe este, por sua vez: tu não estarás a ficar um pouco paranóica? Se calhar até estou, pois não pode haver ninguém assim tão perverso, tão monstruoso... )
  O resto dessa semana passou-se exactamente da mesma maneira: os encontros da manhã, os fins de tarde na esplanada, os melífluos telefonemas, os emails ambíguos. Dir-se-ia que aquele fim de Julho iria trazer a Teresa uma qualquer oferta promissora, uma qualquer regeneração que lhe adensasse a vida e a dotasse de sentido e alegria. E, com este estado de espírito, entrou ela na primeira semana de Agosto. Nos primeiros dias do mês estranhou que Diogo não aparecesse mais, nem para os pequenos-almoços nem ao fim do dia na esplanada. Estranhou de tal modo que não se conteve e, ao fim de uns tempos, perguntou a um dos empregados. Mas então a menina não sabe?! Fitou-a atónito o empregado. Não sei o quê? O Diogo casou-se no domingo passado e deixou de morar aqui na rua. Teresa não soube que cor adquiriu, porque ouviu a voz do empregado como vinda de muito longe: está a sentir-se bem? Estou, estou sim, obrigado! Mas o Diogo não lhe disse, vocês eram tão amigos, estavam sempre aqui?, perguntou o empregado, de olhos esbugalhados. Ah, vai ver que ele me disse - recuperou Teresa -, mas eu sou tão distraída que devo ter feito qualquer confusão. Pois!, tartamudeou o empregado, já que era suposto ter de dizer alguma coisa.
  ( Não é possível, sussurrou ela a Gonçalo, que, enroscado num sofá não sabia o que responder. Ao fim de uns minutos ele ousou dizer: talvez se tenha esquecido de se despedir ou pensasse que o assunto não te interessava. Ela fulminou-o com o olhar: por favor, Gonçalo, agora não, solidariedade masculina a estas horas não, e muito menos vinda de ti.)
  Teresa nunca mais falou em tal coisa. Se nela pensava, ou não, nunca o viremos a saber, pois não deixou nada escrito acerca de tal assunto. Nos primeiros dias de Setembro, meteu-se no carro e rumou à casa de Tavira, onde iria passar o resto das férias.

  Dois meses depois, por um puro acaso, Gonçalo encontraria Diogo numa das discotecas mais in de Lisboa. Cumprimentaram-se. Sabes quem morreu?, perguntou-lhe Gonçalo. O outro olhou-o como se a pergunta não fizesse sentido naquele momento. Mas Gonçalo insistiu: a Teresa! A Teresa, qual Teresa?, sorriu o outro com o ar falsamente ingénuo do costume. Eh, pá, a Teresa, aquela que morava no prédio em frente ao teu... vocês davam-se... teve um desastre de automóvel lá em baixo, no Algarve... teve morte imediata. Mas eu não sei de quem estás a falar!, exclamou Diogo, através da música, postando um ar doce, quase angelical. Eh, pá, não me digas que não te lembras da Teresa, vocês deram-se durante anos?! Não, não estou a ver quem é... enfim, é a vida! Olha a ti é que gostei de te voltar a ver, estás com bom aspecto. Ciao, a gente vai-se encontrando por aí! E regressou para junto de um grupo esfuziante, deixando em Gonçalo a confirmação de uma suspeita que nem sequer fora sua.

  Mateus, Victor Oliveira. Suplemento h do Macau Hoje. Macau, 4 de Maio de 2012.
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