11/04/12

" (...) ele pediu um pano que o vento mexesse, queria pintar o movimento. "

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        " Vertebrado "

  Sempre andei por esse rio sem nunca entrar nele A balsa daqui carrega mais do que a estrutura suporta. Ela é um estrado flutuante com dois tonéis cheios de ar debaixo. Transporta farinha, peixe, animais, gente, o que puder ser empilhado.
  Ondas borrifam as crianças, primeiras da fila, ficam na frente como num comício de vereador. Foi pela balsa que atravessou um estrangeiro, ele tinha um mapa da região e perguntou no posto de saúde se alguém queria servir de modelo. Não queria doente, mas tanta gente num lugar só, era mais fácil achar um corajoso. O povo riu do rapaz. Modelo vivo pra ficar parado na frente do estrangeiro e fazer o quê? Nada. E quem ia ver o que o moço ia pintar? Se nossa cara, a barriga ou o cansaço?
  Eu topei. O quadro ele guardou, eu fiquei com uma fotografia da pintura que ele mandou ampliar e botar moldura. Pendurei na sala. Fiquei pelada não, botei um vestido rodado, ele pediu um pano que o vento mexesse, queria pintar o movimento. Eu me exibi no píer do centro. Os peixeiros já haviam saído das canoas, as luzes da vila começando acender. Ele queria copiar o final do sol, eu parecia uma cebola com as cascas esvoaçantes. Atrás de mim rebolava o rio, querendo aparecer.
  No quadro, o rio se mexe mais que o tecido, mostra os dentes. Depois de mim outras quiseram um retrato, o estrangeiro foi ficando. Os maridos não deram bola, a pintura ao ar livre, todo mundo vendo o que estava na frente e atrás da tela.
  A balsa afundou há três meses, sobrou um ou outro passageiro. Por sorte, naquele dia fiquei aqui cuidando do meu serviço. Um dos sobreviventes foi o pintor, ele vinha com um pacote de tintas que mandou trazer da terra dele. Um tonel se soltou do estrado e a balsa ia tombando, mulher aos gritos, criança chorando, urro de porco. Do píer não deu pra ver o naufrágio, soubemos do acidente um dia depois pelo pintor que deu braçadas até à beira da vila vizinha, chegou aqui sem tintas. Perguntei o que tinha acontecido, ele respondeu no meio da praça. Disse que o rio não queria mais nada sobre ele, não ia carregar esse mundaréu nas costas, dali para diante que o deixássemos sozinho. Que enfiassem anzol em lago ou mar, agora só liberava o banho, que é quando ele se acalma com o calor de um corpo.
  O povo deu o pintor por doido. O estrangeiro ficou chateado, ele já tinha visto coisa pacata se rebelar. Disse que na Índia um elefante foi criado sem a mãe e ficou delinquente. O rio a mesma coisa, se corcoveou uma vez, ia corcovear de novo, não havia outra autoridade acima dele. O rio estava orfão.
  A cidade mandaria outra balsa em um mês, a prefeitura tinha interesse nesse povo daqui que ia comprar mantimento lá. Dois meses e nada. O pintor extraiu corante de raiz e fruta, ia pintar em fibra de côco, agora até pescador queria se ver torto com o rio ao fundo. Os pescadores vendiam galinha e lagarto, os peixes começaram a se desviar de toda isca, feito gente. Em pouco tempo começou a faltar mantimento, um rapaz improvisou uma jangada, precisava levar a mãe doente para o hospital e trazer farinha. Nunca mais voltaram. Outros que foram procurá-los também não.
  A balsa lá em baixo virou alojamento de lambari. A vila podia se sustentar sozinha, era só ninguém querer o progresso. Foi a exigência do rio, que sua margem não se alterasse, o deixassem livre, sem carga. O rio era um animal vertebrado que se arrastava pelo leito, não caberia tão encaixado em outro. Há muitos anos sua cabeça e barriga haviam passado por aqui, nem vila existia. Hoje o que caminha diante de nós é sua cauda, tão longa que levará tempo pra essa água toda desaparecer. Temos que esperá-lo terminar a travessia.

   Fuego, Andrea Del. Vertebrado in um rio de contos, Antologia Luso-Brasileira. Dafundo: Editorial Tágide, 2009, pp 42 - 43 (Organização de Celina Veiga de Oliveira e Victor Oliveira Mateus).
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