15/11/12

"A corrupção dos governos começa sempre (...) pela dos seus princípios,"


.A corrupção dos governos começa sempre, hoje como no tempo de Montesquieu, pela dos seus princípios, mas a corrupção dos princípios deve ser transmitida pelas elites para encontrar uma forma de legitimidade. Para tal, nada como a mentira histórica. Foi um dos grandes pilares do maquiavelismo de massas, no século passado. George Orwell, um dos raros espíritos que compreenderam a essência do militarismo, viu nela uma das mais horrendas violências: "Se o chefe declara que este ou aquele acontecimento não ocorreu - pois bem, não ocorreu. Se diz que dois mais dois são cinco - pois bem, dois mais dois são cinco. Esta perspectiva assusta-me mais do que as bombas." A ideia de que a mentira é uma das piores formas de destruição da humanidade não é corrente. A razão é simples: o número de colaboradores é demasiado grande e todos têm algo a censurar-se. No sistema totalitário, a mentira do carrasco era necessária porque ele procurava não a verdade mas a inculpação, e a da vítima, inevitável porque os interrogatórios provocavam a desintegração da personalidade. Mas perguntamo-nos o que poderia justificar realmente a mentira daqueles que, não arriscando absolutamente nada, contribuíam portanto para o assassínio - de longe.
Um exemplo permitirá ilustrar esta afirmação. O nosso grande poeta nacional, Louis Aragon, a quem não eram conhecidos quaisquer talentos agronómicos, escreveu, em defesa de Lyssenko, um texto que seria cómico se a batalha travada em nome desse estouvado não tivesse provocado tantos crimes na URSS. O obscuro técnico agrícola que pusera mão sobre uma parte considerável da ciência soviética esteve na origem de trinta anos de impasse agronómico. O artigo de Aragon foi publicado na revista Europe em 1948, sobre um tema em que a sua incompetência poderia ter-lhe aconselhado a discrição. Eis, no entanto, o que escreve no momento em que o "lissenkismo" está no auge em Moscovo e em que se morre por se opor à sua doutrina (...).
As teses genéticas eram consideradas "hitlero-trotskistas" e os partidários de Mendel encontravam-se na categoria condenada dos "inimigos do povo soviético". A genética não podia ser verdadeira, porque era incompatível com o materialismo dialéctico! Assim. podiam justificar-se milhões de mortos na Ucrânia, o celeiro de trigo da URSS, e no resto da União Soviética. Nas aldeias que apenas contavam cadáveres, haviam sido deixadas, ao lado dos corpos, mensagens lancinantes dirigidas aos visitantes futuros (...). As aberrações de Lyssenko permitiram a condenação à morte de inúmeros geneticistas - em especial do grande sábio Nikolai Vavilov, que morreu no campo de Saratov, em 1943 -, mas serviram sobretudo para encontrar bodes expiatórios para o falhanço da reforma agrária de Estaline na década de 1930, fracasso que conduziu a que pais comessem os filhos.
Na era de Gorbachov, foram abertos os arquivos sobre este período. Os documentos foram expostos em 1992, na Biblioteca do Congresso em Washington, mostrando que a horrenda fome causada entre os camponeses não era ignorada pelas autoridades (...).
É preciso ter estas cenas em mente quando se pega na pena para justificar os regimes injustificáveis. No texto de Aragon, não é apenas a perversão intelectual, manifesta nesse tecido de asneiras, que nos choca hoje em dia. É a participação - involuntária, é certo, mas real - num crime em grande escala. Nesses casos, perdera-se muitas vezes todo o sentido da ética intelectual. É a justo título que essa perda assusta Orwell mais do que as bombas. Os exemplos continuam a ser em grande quantidade, vinte anos mais tarde, com as apologias do maoísmo nas capitais ocidentais.
 
   Delpech, Thérèse. O Regresso da Barbárie. Lisboa: Quidnovi, 2007, pp 73 - 77.
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