28/04/13

Da vida, da poesia e de todas as coisas...


                                   Uma alegoria ao correr da pena…

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    Quando eu era menino, acedíamos à quinta de duas formas: por uma porta que um tio-avô mandara fazer nas traseiras de sua casa ou por um portão que a caseira, morando no outro extremo das habitações, tinha no seu quintal. Geralmente, eu e os meus primos escolhíamos a primeira alternativa. Certo dia, contudo, a minha avó, por uma questão de colheitas e de dinheiros, incompatibilizou-se com o irmão: mandou fechar o extenso corredor que ligava as duas casas, deitou abaixo uma das paredes traseiras e, uma vez com acesso directo à quinta, ordenou que se fechasse o poço a cadeado. Os meus pais ainda a tentaram persuadir com o célebre argumento de que água não se nega a ninguém, ao que ela respondia, célere e inflexível: Nem a honra, nem a dignidade! Minha avó nunca mais falou ao irmão, considerando sempre que aquilo que os distinguia jamais poderia ser colmatado por quaisquer tipos de elos ou afinidades. Eu e os meus primos passámos a ter dificuldades acrescidas nos nossos jogos e brincadeiras, já que o meu tio-avó, por vezes, vingava-se em mim e nos netos: Eles hoje não saem; Eles hoje têm de estudar, etc. No entanto, quando nos encontrávamos todos era uma festa: os mais velhos subiam às árvores à cata de ninhos, as raparigas preferiam as cavalariças e o picadeiro, um ou outro corria atrás dos gansos (imagem que mais tarde me daria um certo jeito para um poema da Antologia da Hariemuj!) de vergasta em punho, quanto a mim – e excluindo o descarregar dos porcos, com os seus guinchos aflitivos, de que nunca gostei – ia para um lado qualquer dos que eles escolhessem. Mas – e para confessar – aquilo que mais me seduzia era ficar a observar o enorme galinheiro: era um enorme edifico que os meus bisavós tinham mandado fazer entre três pilares que haviam pertencido a um moinho de vento… eu ficava fascinado a observar a ordem que naquilo tudo havia: as diversas capoeiras estavam unidas entre si por estreitas passagens, todavia, as galinhas jamais trocavam de divisória e quando Adelaide (a única mulher que até hoje vi de pera e bigode e a única empregada de que eu fugia sempre sete a pés!) vinha com as sêmeas, o milho ou as hortaliças, a aproximação ao comedouro era uma autêntica cerimónia de poder e de submissão: elos de vassalagem, medos, rituais de sedução levados a cabo por alguma ave infortunada visando conseguir algo -- Deuses, como a minha observação infantil do galinheiro me viria a ser útil vida afora, quantas e quantas vezes a reencontrei sob disfarces múltiplos e camuflagens torpes! Mas – e deixem-me confessar – daquilo que eu gostava mesmo, nessa altura e durante essas observações, era das minúsculas galinhas da India: indiferentes às regras das grandes, saltavam de divisória em divisória, comiam e dormiam onde lhes apetecia e ao pé de quem lhes apetecia, era como se fossem aves de outro mundo, de um mundo paralelo que escapava à normalização vigente do galinheiro uniformizado em função de regras e submissões… As galinhas da India, naquela sociedade perfeitamente hierarquizada, poedeiras de ovos desprezíveis, com a sua figura e cantar frágeis, não serviam naquela quinta para absolutamente nada… para nada é como quem diz: a mim serviram-me para apurar o ver, para me ensinar a afastar de aparências e fraudes, para evitar os caminhos demasiado tortuosos e investir, apenas, naquilo que a mim se possa dar -- em autenticidade e com rasgos de absoluto. V.O.M. (Lx, 24/4/2013, 22h09)
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