17/10/11

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os que sabem, fugiram. Ou dispersaram-se, acolhidos no ódio do que sabem. Dele. Do que ele não sabe. Sabem falar do que ouviram, do que leram. E escrevem um longo comentário rancoroso, atados a palavras que não lhes pertencem. Sabem o trilho mais simples de uma palavra, o que ela diz para esconder todos os outros caminhos, que vão ficando para trás, até se tornarem indecifráveis. Eles não sabem que uma palavra é a história de múltiplos desvios. Ouviram o homem dizer: neve. Porque às vezes o homem diz: neve. E perguntam-lhe: de que neve fala? Tudo está a mudar. Tudo: disse ele. E afastou-se. Tropeçava nas pedras, virava-se para trás e via-os, espantados, na grande incompreensão de uma palavra tão simples. É sempre a mesma paisagem: diziam: não consegue ver isso? E o homem pensava: parece sempre a mesma paisagem. Porque uma paisagem é a história dos olhos que a vêem. Esta árvore, por exemplo, qual o seu nome? qual o seu nome? Não interessa. Esta árvore percorreu a minha vida: subi por ela aos seis anos, balancei-me num dos seus troncos aos dez, apanhei aos onze no seu cocuruto o ninho de uma rola, sentei-me à sua sombra aos quinze, e encostado ao seu tronco toquei pela primeira vez os olhos de Sigmar. E senti-os tremer, sob as pálpebras, contra os meus dedos. E ouvi Sigmar dizer. E ouvi Sigmar dizer. Mas não me lembro do que disse. Sigmar. Sigmar falava. E o que eu ouvia era Sigmar a falar, não o que ele dizia. Aos vinte anos, esta árvore pesada de neve passava na janela do comboio, contra o branco da neve, era outro branco mais escuro, um branco que se erguia e chicoteava o branco. Um cenário de branco. E o som por onde fugíamos, por onde tudo fugia. A árvore, esqueleto do branco. A meu lado murmuravam: quase não se vêem as árvores, e eu pensava: como se vêem!(...) Há qualquer coisa de incerto nesses objectos: comem a luz, são borrões de alvaiade, criam sombras imprecisas, em decomposição. A morte do gesso é a cor dos olhos de Himmler que contaminaram tantos olhos, até os meus. Quando me vejo ao espelho, não são os meus olhos que vejo, mas os de Himmler, uns olhos que começaram a ser os de Himmler, depois de os ter visto pela primeira vez. Ele semeava, semeava-os por tudo o que olhava: outros olhos. Perdi-me, estou sempre a perder-me, cheguei aos olhos de Himmler e não sei porquê, de onde vim, onde se iniciou este caminho, ou todos os caminhos, os meus, os dos outros, vão dar aos olhos de Himmler?

(...) estas árvores onde o mundo se agarrra, manchas de silêncio, e entre elas o sussurro constante, monótono, das vozes. Quer ver as pessoas, mas quando as fixa, elas esbatem-se, e ficam indecifráveis. Tudo o que quer ver se torna mancha. Que é um desejo de luz. E na sua periferia, a nitidez inatingível. De vez em quando dizem-lhe: veja onde põe os pés. E empurram-no. Ele dá um passo em frente, ou recua, ou bate com o ombro numa parede, ou num candeeiro, ou desequilibra-se e fica sentado num banco, enquanto a mancha devora quem passa. O seu branco esfomeado. A neve. Os olhos de Himmler. Ás vezes agarram-lhe no braço e levam-no dali, puxam-no e ele acompanha quem o puxa. Obediente. Tenha cautela: vão-lhe dizendo: onde está a sua família? a mulher? os filhos? os netos? fale, fazia-lhe bem falar. Sente-se aqui. E empurram-no um pouco para trás. E ele senta-se num banco de pedra.
Um cheiro a laranja.

A mancha é o mundo, que o esqueceu, a falta onde os seus olhos descansam da visão insuportável. E alastra pelo tempo, cria os grandes espaços lacunares contra os quais se encarniça o que resta do mundo, espaços que interrompem as palavras, devoram os rios, e enevoam os bosques, espaços-mordaça, os do homem que se move repetindo, repetindo-se, a cada passo, com a violência dos que esqueceram. Cada passo é o último, cada passo acaba o percurso de um passo, e desloca um pouco do mundo, mas esse pouco torna o mundo insuportável. Tenho medo: diz. De mover pelo mundo a sua mancha e de o atirar para a periferia. Tem medo da fluidez dessa mancha que é o mundo a acompanhá-lo com a sua cegueira.


 Rui Nunes in " Os Olhos de Himmler ", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2009, pp 95 - 97.
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