23/10/11

.
Vamos na órbita dos ciclos que geram
a inocência. Ciclopes amarrados à visão
desprendida, nítida, das origens. Como
quando, outra vez descalços, colhíamos as
amoras e os morangos silvestres nas
tapadas onde o vento era azul, azul o
sangue. Quando eram verdes os lençóis e a
noite crescia dentro da manhã. Como cres-
cem as crianças.

E olhas em redor. Este é o círculo
perfeito onde o olhar dorido se demora e
descansa. A planície contornada por uma
vegetação rasteira e incólume. Distante
mora o fósforo dos incêndios. Em sua
cabeça exangue ardem ameaças e terrores
que adivinhas somente. Sê vigilante e subtil.
Não durmas. Ou dorme sobre o lado direito,
sem pisar o coração, que vela de olhos
fechados, mas acesos. Como um clarão, uma
medalha de ouro iluminada, um punho
inflamado erguido sem revolta. Ou dorme,
sim, como dormem os aloendros, vertical e
secreto, em teus rizomas de aço e de ternura.

E desciam então dos eucaliptos as
rolas atreladas ao carro do canto. E suplan-
tavas em agilidade, na corrida desordenada,
os galgos e as lebres. E bebias a água do
açude com teu bico de cegonha, o coração
de azevinho. Pastor de ovelhas tresma-
lhadas, dum rebanho de cabras silvestres.
Essa a tua escola verdadeira. Na cartilha
maternal das borboletas aprendeste a voar,
e ali escreveste, nas ardósia do vento, os
primeiros poemas.

 Albano Martins in "Assim são algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto,
2000, pp 199 - 201.
.