11/10/13

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“ Helena em Tróia, os últimos momentos “

 

 Lembro as noites de sufoco com os pássaros
encalhados no topo das torres, com a luz
a torcer-se nos meus olhos e o calor,
já prenúncio de desastre, descendo em ameaça
a rigidez do Parnón para ali se misturar
com a passividade das ovelhas, com o desalinho
ofensivo das cabras, com o relincho selvagem
dos cavalos a saciarem-se, alheios a tudo,
nas águas frescas do Eurotas. Lembro
a minha perda ainda mal desenhada na erva
tenra das margens, enquanto os deuses,
em conluios de quem tudo pode, me preparavam
armadilhas fortes e sem possível escapatória.

 
 
 Lembro as lautas refeições noite adentro
onde o riso dos homens se enredava na vileza
partilhada e a gordura lhes escorria pelas barbas,
enquanto  o cheiro da urina se misturava
com o do porco bravo a voltear sobre um fogo
intermitente. Lembro os movimentos
voluptuosos das dançarinas, mulheres encenando
o que não sentiam, para o simultaneamente
boçal e frouxo apetite dos homens. Lembro
as guturais entoações dos poetas, espécie
sempre indecisa entre a inveja e a concupiscência
da alma, arvorando entoações de ouro
nos míseros recipientes onde recebiam as esmolas.
 
 
 
Lembro também os músicos, tão desacompanhados
de tudo, os guerreiros – impotentes como todos
os guerreiros -, os estrategas, os generais, os nobres…
E lembro sobretudo a presença de Hermíone,
com os seus nove verões recém concluídos,
a acenar-me por entre a rudeza dos convivas
e do abandono a que, em breve, a votaria –
eu, qual funesta mãe a quem o ventre deveria
ter sido mirrado à nascença, para jamais trocar
filha por salvação própria em braços de homem
raro, homem que me perdoaria um passado
só de corpo, de fealdade da mente, de prazeres
grosseiros, como grosseiro fora tudo antes dele.

 
 
Lembro esse mesmo homem a atravessar
a cidadela, a entrar no pavilhão entre a falsa
ousadia varonil e o engaste de um desnorte
verdadeiro a esconder-se por detrás de tudo
o que em Heitor era missão e primazia. Vi-o
e soube de imediato a que perda estava destinada,
a que fim me conduziriam todos os caminhos
que se emaranhavam agora do meu promíscuo
passado a esse barco que no porto me sabia esperar.
E, quando ele finalmente reparou em mim,
percebemos ambos que nenhuma saída era já possível;
que Apolo, senhor do sol e de todas as luzes,
de nós se apropriara como exemplar fulgor do eterno.

 
 
Páris Alexandre, sussurravam as criadas o seu nome,
gritavam-no os homens entre si, ressoavam-no
os antigos oráculos, que de mim tanto escondera
por temor e cobardia. Nove dias após o primeiro
olhar! Nove dias onde as noites floresciam
com tanta coisa sufocada e aguardando a mão
certeira. Noites a medirem-se por um fascínio
em desalinho:  faixas decoradas, colares de contas
de âmbar, braceletes de folha de ouro, tecidos rasgados,
suor, saliva, pingos de sémen e a nossa perda
também, mas essa não nos interessava,
porque cheirava a ganho e a instantes eternizados,
coisa que só a poucos é concedida.

 
 
Não, não me julguem pelos relatos futuros, por essas
inverosímeis epopeias ou pelos preconceitos dos que não ousam!
Tróia teria sido igualmente destruída: as terras de Dardano
eram apetecíveis, mas pela geografia e pelos celeiros de trigo.
Eu fui apenas o pretexto! Os políticos, casta de facínoras
com máscara de sorrisos, há muito tinham decidido
a nossa perda; na sua ganância não cabe a honra
nem estórias como a minha e nos seus melífluos argumentos
apenas a abastança se descobre pelo fedor insuportável
dos seus ventres sórdidos. Fugi, pois, dos poetas, dos políticos
e das estelas à beira dos caminhos! Só a justeza da paixão,
a sua lealdade, é verdadeira, só ela poderá um dia
dar sentido à pequena e miserável  História dos homens.

 

                              VICTOR  OLIVEIRA  MATEUS (Inédito)



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