30/10/13


Há semana e meia saltando de sonhos
para rabiscar umas frases, fixar
um tom, um xis no mapa, a direcção
para o ouro, e às tantas já não
não passo, fico deste lado, murchíssimo
de mãos nos joelhos, a soprar os meus
moinhos, coisas absortas e sonolentas,
livros, papéis, fortificações ridículas.
Apago e acendo a luz, continuo só.

Redijo e enceno as minhas didascálias,
e no abafo da fadiga vejo crescerem
musgos e bolores brilhando
na penumbra. Movimentos no fundo,
ausências cada vez mais familiares. A sombra
deu em doida e escangalha-me os relógios,
alimenta-se das tripas, agoniza
pelos cantos, dorme com o teu vestido.
À cabeceira, enfiado numa caixa de
fósforos, um bicho afina para mim
a melodia do mundo, dá-me corda, um
ritmo, esse nó-corredio que me desce
ao poço. Na caixa, deixo uma nesga
para que olhe comigo o tecto e onde
lhe deito as moscas que me mordem.

Desvio as cortinas, longe ouço vibrar
uma tempestade. Um cão guardando
miragens ladra, alinhando o horizonte,
e anima-me, faz-me descer para a ideia de
andar doce por aí roubando as tardes,
os bolsos cheios de nêsperas e a luz
desassossegando o reino. Mas chove,
a chuva conta cabeças, enche as flores
e deixa-as tombar largando esse perfume
de dilúvio pelos declives açucarados
que levam aos espaços de recreio,
fontes, chafarizes, estátuas segurando
a corda da roupa e da pardalada, junto
com o mobiliário abandonado
de que o jardim se apropriou. Na imensa
sala de visitas, um sofá de pulgas
e um televisor com o ecrã arrancado ao
biqueiro, enquadra um plano soberbo
deste fim de tarde.

Ando mais devagar, encho a rua
de solidão, vejo-a descer, retocando-se -
a noite. Mulata endiabrada soprando beijos
em todas as direcções. Vou atrás, sigo
os meus sonâmbulos. Vamos para os lados
do seja-o-que-deus-quiser.

Não falo, está tudo tão claro, tudo tão
insistentemente banal. Pus baixinho
o coração, frio, a noite inteira a ouvir
dolorosas invocações, uma e outra vez
as mesmas histórias, por favor a um mundo
acabado. Virando as páginas ao jornalzinho
da eternidade, saquei uns versos, o pouco
de realidade e esta sensação de permanência
que nos faz ganhar raízes, ancorar
nestes lugares infectos até ao gole radioso.

O barulho do fósforo rasgou um
suspiro à luz vesga que nos ilustra.
Colagens, cigarros, vastas pausas na moleza
de gestos sem osso, rodando o copo -
pequeno coreto onde dançam para
essas canções redondas que o peito geme,
cansados, trôpegos reflexos. Então,
metem-se-nos ao caminho umas
tipas sem rosto, adivinhando a nossa
sorte, facilitando o azar. Demorou

mas lá saí trazendo pela mão algum delírio,
oferecendo explicações à paisagem,
fundos de ruas malcheirosas, ecos sem saída,
flores aos ombros umas das outras
nesses canteiros onde o que mais bebem
é mijo. Como elas, eu também sou levado
em ombros. Os meus fantasmas todos
cantando. Como explicar o bem, a alegria
de andar pela vida fugido, e agruparmo-nos,
mijando às portas da alvorada.


    Pinto, Diogo Vaz. Bastardo. Lisboa: Averno, 2012, pp 92 - 94.
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