03/03/11

a regra e as excepções...


Nota - A minha posição em relação ao palavrão vem sendo a mesma há já alguns anos, assim, sou contra o seu uso como forma de exibição gratuita, mas defendo-o como necessário se traduz um dado contexto socio-cultural e/ou dados estados emocionais. O conto que se segue publiquei-o em 2006... já nem me lembrava dele. Não deve ser lido por quem não gosta de palavrões em literatura!!! Pessoalmente deu-me muito prazer escreve-lo, imaginava-me sempre dentro de um filme do neo-realismo italiano... Se virmos bem, também faz pensar, aliás, nessa altura alguém me escreveu: "agora já ele é um senhor respeitável em Genebra". Juro que essa pessoa escreveu Genebra (ainda tenho aí o mail) e não Cabo Verde!
.
.
"O Atrasadinho"
.
Tudo por causa do raio dos olhos, parados, quase mortos. E eu ainda os abro mais, como se não visse. Autismo, disseram os médicos. O gajo é mas é atrasado! Decretaram os meus irmãos do alto da sua experiência. E assim fiquei: quase inexistente. O meu pai aproveitou-se: punha tudo em meu nome e olhava de soslaio para os meus irmãos. Malandros!, rosnava. Olha, filho, está tudo aqui! E apontava para uma caixa azul enterrada no quintal: os extractos, as aplicações. O pai assim fica descansado, acrescentava, como és atrasadinho. O meu irmão mais velho pirou-se cedo: comeu a filha do Hermenegildo e este apareceu aí com uma de canos serrados... Foi uma tourada aqui na rua! Pronto, casou! O mais novo atirou-se ao marido da Isilda do 2º Dto., um que era polícia, daqueles que dão porrada na malta. O maricão ainda apareceu aí com um olho negro. Mas a coisa deve ter mudado, porque depois encontrei-lhe uma coleira na cama. É do cão, disse o sacana. Qual cão?! Pensa que sou atrasadinho ou quê? Nós nem temos cão. E as algemas de que o polícia se esqueceu cá? Se calhar também são do cão. Quando o meu pai marou apareceram todos. Olha lá, perguntava-me o mais velho, sabes onde está a papelada? Eu abria os meus olhos azuis e babava-me. Não vês que é atrasadinho? Impunha-se a minha cunhada. O cabrão do mais novo é mais vivaço: como não me pôde roubar a mim, roubou o marido à Isilda. Essa puta agora não me larga: sabes p'ra onde é que eles foram? Eu abro os meus olhos azuis e deito a língua de fora. Ele é atrasadinho! Insiste a minha cunhada. Qual atrasadinho, qual merda, ele sabe é mais do que nós todos juntos!... Saíram agora as duas. Foram ao Super. Bem, também vou! As transferências já estão feitas e a casa de Genebra à espera. O avião é às oito. Não me posso atrasar! É que isto de ser sempre atrasadinho também cansa.
.
Victor Oliveira Mateus in "Revista (online) Minguante", Nº 2 Outubro 2006, subordinada ao tema: "o azul".
.