09/03/11

"... um andar de quem não toca no chão. "

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" DO SILÊNCIO E DO OLHAR "
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Vincava os passos nas lajes com a precisão de um tambor antes da batalha. A ansiedade dos tacões ecoava corredor afora, batia nas paredes, nas janelas, nos quadros. Por vezes, lá ao fundo, a porta de um dos quartos abria-se e saía a criada velha com uma bacia, com toalhas ou qualquer outra coisa cujo significado ela bem conhecia. Ao fim de algum tempo os gritos tornaram-se mais estridentes e ouviu-se um chorar de recém-nascido. Minha avó precipitou-se para o quarto mas a criada velha interceptou-a a meio caminho: "Minha senhora, é um menino, é um menino!" Gritava feliz. Minha avó estacou: o corpo fremente, a raiva a apoderar-se dela, o rosto vermelho, muito vermelho: "Um rapaz?!... Raios! E parece que vem mal disposto, só agora chegou e já está aos berros." Deu meia-volta e começou a subir para o primeiro piso, mas, a meio da escadaria, ainda se voltou para trás tornando a coisa mais clara, não só para as duas criadas, como para a parteira que, entretanto, tinha surgido na ombreira: " E fiquem sabendo nesta capoeira nunca nenhum galo há-de cantar!". Fechou-se no seu quarto de onde não desceu durante dois dias.
Alguns meses andou ela contornando a minha transparência. Macho naquela casa nunca teria a vida facilitada. O marido da minha tia mais velha raramente emitia uma palavra e, por razões de maior eficácia, decidira mesmo começar a ensurdecer. O meu tio Licínio, irmão de minha mãe, fazia aparições meteóricas: o seu Morris preto, CE- qualquer coisa - qualquer coisa, o fato impecavelmente engomado, gravata a condizer, o cheiro gorduroso da brilhantina, os sapatos de verniz. Licínio dormia lá algumas vezes, mas noutras só Deus sabia - sabia Deus e a minha avó, que o mandara espiar até apanhar o busílis. Quanto ao meu pai, deve ter sido o caso mais complicado: apareceu, certo dia, no salão grande, para o pedido formal de noivado: " Sra. Dna. Lucinda - gaguejou ele - venho pedir-lhe a mão de sua filha. " Ela fulminou-o com o olhar, e, com toda a gente perfilada atrás dela, perguntou: " Qual filha? Tenho três!". "Desculpe, Sra. Dna. Lucinda, mas uma já está casada.", ela pigarreou: " Eu sei que uma está casada, por isso é que disse três... Uma mãe sabe estas coisas. Fareja-as." O meu pai corou. O meu tio Licínio, envergonhado, escondeu-se imediatamente atrás da minha mãe e da irmã mais nova. " É da Leonor, minha senhora... é com ela que eu gostava de namorar", "Ora muito bem, assim é que as coisas são claras, só espero que seja para ir avante, pois, como deve saber, eu não gosto de si. Pode, sim senhor, começar a namorar! Nada de falar à porta nem à janela, o senhor namora cá em casa, às quartas e sextas-feiras, das quatro às cinco da tarde". E foi assim que apareci eu, o indesejado.
No entanto, um volte-face ocorreria deveria eu ter uns quatro meses. A minha mãe, entrando no quarto, deu com a minha avó frente à minha camita a persignar-se: "Que foi, mãe?", perguntou assustada. " Ai, rapariga, já viste bem os olhos do teu filho?", " Que têm os olhos do meu filho?", " Ai, Leonor Maria, são os olhos do teu pai!", " Ó, mãe, deixe-se dessas coisas eu já tinha visto que o Pedro é parecido com o avô, mas isso é normal, as crianças parecem-se sempre com alguém da família. " A minha avó ficou muito tempo em silêncio. Pegou-me ao colo pela primeira vez: " Não, Leonor Maria, eu sei o que estou a dizer, este menino tem qualquer coisa no olhar." A minha avó beijou-me o pescoço, apossou-se de mim e eu passei a dormir no piso de cima.
Nas primeiras recordações que conservo ela usava já uma bengala, com um belíssimo castão em prata, usava também uma mantilha de seda preta, que depois cruzava debaixo do queixo atirando as pontas para as costas. Mantinha ainda uma pose altiva apesar da indisfarçável ruína em que a família havia caído. Minha avó retirara-se para o sótão, mas sem nunca me largar. Naquele espaço os meus olhos alargaram-se ainda mais, bebiam tudo o que ela me contava: a sua amizade com a condessa de T., as suas disputas com o Dr. Aquiles, primeiro por causa do olival, depois por causa do outro terreno, aquele lá do fundo, onde estivera um poço e um moinho. Mostrava-me revistas muito antigas, fotos desirmanadas; tecia loas aos dois últimos reis, enquanto cuspinhava na Primeira República: " Uns bárbaros, tudo maçons, tudo maçons... uma pessoa saía de casa, mas já não sabia se entrava e o teu avô... houve um dia em que não voltou, foi apanhado por uma bala, no Rossio. Era um homem tão bonito... tinha os teus olhos, o teu modo de falar... um andar de quem não toca no chão. Ah, quando se conhece um homem assim, nunca mais se pode ver outro! Mas tu... tu também olhas para nós, mas o que vês é outra coisa " Eu ouvi-a, quase religiosamente, até aos meus dezasseis anos, arregalava os olhos, via o que ela me contava como se tudo se estivesse desenrolando à minha frente. " Tu achas que a avó está a ficar louca?", " Não vó, acho que é a sua alma que está a ficar cansada!" Ela fixou o tecto para esconder qualquer coisa, ajeitou a mantilha, com as mãos trémulas alisou também o amarrotado da saia sempre a arrojar o chão, e, num sussurro antes de adormecer, ainda deixou sair: " Vieste em altura má. Gastou-se tudo. Vão ser precisas décadas para voltar a subir e eu já não tenho freio nesta gente... Protege-te dos teus tios, dos teus primos, eles nunca te irão perdoar o teres-me mudado, nunca te irão perdoar teres sido o preferido... mas... tu já és um homem... e depois tens esses olhos... têm um dom, mas esse segredo é só nosso... "
- Sabe, doutora, ela viria a morrer dois anos depois?
- Voltaram a conversar?
- Não. A família desmembrou-se e...
- Como define, então, o que todos esses familiares sentiam por si? Sempre se sentiu inseguro com eles, não foi? - Fez-se um clique dentro de mim. Lá fora os plátanos ondulavam mansamente. O ruído dos carros, apesar de logo abaixo, apareciam-me como coisa longínqua, as vozes da sala de espera chegavam-me como ressonâncias num túnel que, aos poucos, se me ia abrindo. E de novo a voz da Cidália:
- Os seus pais nunca foram suficientemente fortes para o proteger contra esse exército de ódio, não é Pedro? - Sorri. Olhei de novo os plátanos, agora acalmados. A estátua com uma ponta de baioneta e a águia a querer voar.
- Já percebi para onde a doutora me está a querer empurrar, aliás, comigo o amor sempre começou pelos olhos, com uns começas pelos seios, com outros pelas coxas, com outros ainda pelas nádegas, comigo é pelos olhos. Sim, acho que já percebi! Do olhar receoso e vigilante à sua sedução...
- Eu sei que percebeu, o Pedro é um homem inteligente. Só lhe peço uma coisa.
- O quê?
- Essa capacidade que ambos descobrimos que tem, nunca a use sozinho consigo.
- Qual capacidade?
- De hipnotizar. Até mesmo de se auto-hipnotizar... Se fizer isso sozinho pode ser perigoso.
Despedimo-nos. Uma vez cá fora olhei a tarde, o turbilhão da cidade, o mundo. No café da esquina uma bica retemperou-me o ânimo, enquanto o espelho em frente, como de costume, me ia devolvendo tudo o que nunca fora, tudo o que nunca fora mas com um vasto leque de possíveis no seu centro, apesar de tudo.
- Que tens? estiveste a chorar? - Perguntou-me a imagem do espelho.
- Não. Porquê?
- Não sei! Estás com uns olhos estranhos.
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Victor Oliveira Mateus (Pré-publicação. Conto para uma Antologia cuja temática é a infância)
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