06/02/13

   Fernando Namora, saído jovem da universidade de Coimbra, inicia um périplo voluntário que o enraíza na alma do povo rural pobre, fundindo as suas preocupações estéticas com as necessidades de sobrevivência do povo que ia retratando. Como médico, vive longos anos em Condeixa, sua terra natal, Tinalhas e Monsanto, cerca de Castelo Branco, e Pavia, no Alentejo. João Semana espontâneo, Namora, confrontado com o estado geral de pobreza dos camponeses, escreve o magnífico Retalhos da Vida de Um Médico, I Série, 1949, Casa da Malta, sobre ganhões migrantes, 1945, Minas de S. Francisco, em 1946, A Noite e a Madrugada, em 1950, e, finalmente, a sua obra-prima da arte da narração, um dos mais belos e mais bem escritos romances do século XX e peça de altar do neorrealismo português pela densidade das personagens e coesão harmónica da ação: O Trigo e o Joio, 1954. Em todos estes romances, Fernando Namora, em imagens estéticas vivas e intensas, retrata a avassaladora miséria económica do quotidiano português da primeira metade do século XX.
   Nesta fase rural de Namora, a sua escrita confunde-se com o ideário neorrealista, embora sem se identificar de um modo pleno com este movimento do ponto de vista filosófico, como Urbano Tavares Rodrigues, em 1980, muito lucidamente sublinhou em "O Rosto e a Máscara na Obra de Fernando Namora", e como o próprio Namora, em 1961, ressalva no seu opúsculo Esboço Histórico do Neo-Realismo, considerando o neorrealismo esgotado como projecto literário subsidiário de uma repetição monótona de "temas, ambientes e processos estilísticos". Porém, criativamente, O Trigo e o Joio passará à história como o mais alto monumento estético do nosso neorrealismo possível, isto é, um neorrealismo cujos "temas" se centram na exploração económica do campesinato e não do operariado, cujos "ambientes" se circunscrevem maioritariamente ao ruralismo e cujos "processos estilísticos" nunca superam o documentarismo realista - teses de Namora.
   Entre 1956 e 1965, Fernando Namora instala-se em Lisboa, trabalhando no Instituto Português de Oncologia. Lisboa inspira em Namora uma nova alma, correspondente a uma nova fase da sua obra. Os três livros seguintes, O Homem Disfarçado, de 1957, Cidade Solitária, de 1959, e Domingo à Tarde, de 1961, são expressão deste segundo Namora, que,  sem ferir os seus princípios de cidadão interiorano, soube acolher o pulsar da capital. Lisboa vive então o frenesim criado pelo choque surdo entre diversas correntes literárias, e Namora, mente montesina, experimenta o sabor de uma pulsão estética nascida em Portugal na década de 50, o existencialismo de origem francesa, que acabara de evidenciar a sua cristalização consagrante em Aparição, Vergílio Ferreira, publicado em 1959. Namora confronta-se com esta mentalidade urbana pós-Segunda Guerra Mundial e, acompanhando a História, acolhe-a nos três últimos livros citados, promovendo uma bem conseguida ponte estética entre realismo e existencialismo. Se O Trigo e o Joio se constitui como a sua obra exemplar do período neorrealista, a exploração das nuances da psicologia humana em Domingo à Tarde torna este livro o seu equivalente para esta segunda fase da sua obra.
   Em 1966, publica Diálogo em Setembro, "romance-ensaio" no dizer de Mário Sacramento (Fernando Namora, Lisboa, Arcádia, s/data, p. 81), ou crónicas romanceadas, no dizer do próprio Namora, romance que aproxima a obra do autor do esteticismo presente na narrativa portuguesa da década de 60.
 
  Real, Miguel. O Romance Português Contemporâneo: 1950 - 2010. Alfragide: editorial Caminho, 2012, pp 75 - 77.
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