19/02/13

 
 
  ( Poema XIII do Ciclo A Arrábida )
 
 
Ó cidade, cidade, que trasbordas
De vícios, de paixões e de amarguras!
Tu lá estás, na tua pompa envolta,
Soberta prostituta, alardeando
Os teatros, e os paços, e o ruído
Das carroças dos nobres recamadas
De ouro e prata, e os prazeres de uma vida
Tempestuosa, e o tropear contínuo
Dos férvidos ginetes, que alevantam
O pó e o lodo cortesão das praças;
E as gerações corruptas de teus filhos
Lá se revolvem, qual montão de vermes
Sobre um cadáver pútrido! Cidade,
Branqueado sepulcro, que misturas
A opulência, a miséria, a dor e o gozo,
Honra e infâmia, pudor e impudicícia,
Céu e Inferno, que és tu? Escárnio ou glória
Da humanidade? O que o souber que o diga!
 
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Vê-lo, rico de opróbrio, ir assentar-se
Em joelhos nos átrios dos tiranos,
Onde, entre o lampejar de armas de servos,
O servo popular adora um tigre?
Esse tigre é o ídolo do povo!
Saudai-o; que ele o manda: abençoai-lhe
O férreo ceptro: ide folgar em roda
De cadafalsos, povoados sempre
De vítimas ilustres, cujo arranco
Seja como harmonia, que adormente
Em seus terrores e senhor das turbas.
Passai depois. Se a mão da Providência
Esmigalhou a fronte à tirania;
Se o déspota caiu, e está deitado
No lodaçal da sua infâmia, a turba
Lá vai buscar o ceptro dos terrores,
E diz: "É meu"; e assenta-se na praça,
E envolta em roto manto, e julga, e reina.
Se um ímpio, então, na afogueada boca
De vulcão popular sacode um facho,
Eis o incêndio que muge, e a lava sobe,
E referve, e trasborda, e se derrama
Pelas ruas além: clamor retumba
De anarquia impudente, e o brilho de armas
Pelo escuro transluz, como um presságio
De assolação, e se amontoam vagas
Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo;
Desse vulgo, que ao som de infernais hinos
Cava fundo da Pátria a sepultura,
Onde, abraçando a glória do passado
E do futuro a última esperança,
As esmaga consigo, e ri morrendo.
 
Tal és, cidade, licenciosa ou serva!
Outros louvem teus paços sumptuosos,
Teu ouro, teu poder: sentina impura
De corrupções, teus não serão meus hinos!
 
  Herculano, Alexandre. A Harpa do Crente. Mem Martins: Pub. Europa-América, 2ª Edição, pp 64 - 66.
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