08/12/11

" aquele que conversando pôde apenas/ aprender uma forma de ver... "

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  " Alexandria "

  I

onde se perderam aqueles cadernos a que
teimosamente tornavas para escrever
de novo e de novo as mesmas frases
descalços pés apoiados na arcada da varanda
o sol dando-te no rosto cadernos onde
teimosamente ensaiaste alguns
gestos um verão inteiro atrasando-te
onde estão esses cadernos que não
chegaste a rasgar e a costurar de novo
onde com ténues fios brancos e estreitas
agulhas apenas alinhavaste frases
esses comprados em estações
de autocarro furtivamente guardados
em gavetas de armários com chave

 II

rapariga pintando caixilhos de janelas mãos de
tinta manchadas rápida ela emerge à flor
da voz com o vagar do gato mas numa
prudência tão ensaiada que em nada poderia
persuadir outra palavra dita mergulharia
entre as imagens cujas cores rápido se esquece

 III

aquele que conversando pôde apenas
aprender uma forma de ver esse nunca
falou contigo inteligente e cínico calculou
a projecção do próprio eco a conversa
entrou em areia pela noite alastrou
às lanternas ténues fios brancos e estreitas
femininas mãos por engano a luz feriu-te
um pouco acertando-te no rosto tu reclamado
em cor de sépia se a memória fosse um resgate
uma coisa sem fala e sem pena uma memória
calorosamente guardada e esquecida
coisas que podemos suportar perder
porque nos foram totalmente concedidas

 IV

as pequenas nostalgias como fios se prendem
em encaixes de mãos e ombros aquele
que falou contigo junto às vinhas podadas
nesse dia deixou-te para uma conversa mutilada na mesa
de outono o cheiro de uvas nas mãos
como terias tu provado desse vinho
com que timidez reclamar o que sempre
foi nosso um regresso por hábito à exígua e pobre
divisão da casa às paredes nuas solenidade
de mesa em sala vazia tecla de piano onde
se esconde uma nota em que nunca se acerta

  V

tu na mesa de outono te sentaste o rigor
do corpo direito as mãos nos joelhos
pousadas fazes lembrar aqueles soldados
que muito tempo longe regressam
quando já ninguém os esperava
com altivez olham o que é deles
e já só podem sentir desdém
assim percorres de novo e de novo
a estreiteza das mesmas ruas

  VI

continuarás a voltar a estes quartos junto
aos portos de alexandria como fez kavafis
nos seus poemas o encontro e diálogo com
as coisas será por fim uma pequena variação
de cor na luz do dia será esta forma de
silêncio o ajeitar da última flor no vaso
em que a aprisionaste

  Tatiana Faia in " Lugano ", Artefacto, Lisboa, 2011, pp 47 - 49.
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